Reisado no Juazeiro de Pe. Cícero - Por Oswald Barroso

      “A Luta do Rei de Congo em Defesa do Folclore”. O Povo, 25/08/1984.

Oswald Barroso. Teatrólogo
 A trajetória de Zuza Cordeiro, talvez o mais antigo e um dos mais famosos mestres de reisado do Cariri cearense, revela outra face do nosso folclore. Mostra os choques e as transformações da cultura popular face à tecnologia dos grandes meios de comunicação de massa. Evidencia o seu esfacelamento e a sua resistência, fenômenos difíceis de detectar, nesta semana dedicada ao folclore, se nos ativermos apenas às apresentações e aos debates promovidos pelos órgãos oficiais de cultura.
 Longe das aparências superficiais das promoções institucionais, que são bem intencionadas mas impotentes, se trava verdadeira batalha pela defesa do nosso folclore. A esperança de preservação está principalmente na capacidade de adaptação do povo às suas manifestações culturais quanto aos avanços ou agruras, enriquecendo-as continuamente, apesar de toda a crise econômica.
 O pai de Zuza Cordeiro, devoto de Pe. Cícero, mudou-se para Juazeiro do Norte quando este tinha apenas cinco anos. 1914, movimentação de romeiros, guerra e muitas atribulações. Depois, o tempo serenou e havia cinco grupos de reisado na cidade: Mestres Serapião, João Borges, Manoel Dias, Antônio Filinto e o do finado Zé Monteiro, que era o mais antigo. Neste, o menino José Gomes da Silva começou a brincar como bandeirinha. Mais adiante ganhou a alcunha de Zuca Cordeiro.
                                                     Guerra e Paz.
 Bandeirinha é sinal de guerra, porque reisado representa uma guerra completa, antigamente entre mouros e cristãos. Foi assim que Zuza Cordeiro aprendeu. Mas agora compreende-se como guerras entre reis de Congo, e assim o reisado passou a ser chamado, Reis de Congo.
 É no “quilombo” que essa guerra aparece mais conhece o segredo de cada passo da brincadeira:  O “quilombo é uma coisa bem feita. Se faz o sítio e o trono da rainha. Quando acaba, bota ela lá e se formam dois partidos, a metade negra e a outra branca, como é desde o princípio do mundo. Desde o tempo em que o rei Gespácio tomou a rainha de Baltazar, daí se formaram os dois partidos, sendo o a favor de Jesus dos negros, e o branco do rei Heródes. Aí, foram e roubaram a filha do Rei de Congo, que é pretinho. Formou-se, então, uma grande luta tormentosa guerrilha, com a companhia do rei contra o partido de heródes”.
 Em tempo de paz, porém, o reisado é mais brejeiro, transformando-se numa dança singela. Quando Zuza Cordeiro, um plantador de mandioca da Serra do Araripe, se tornou mestre e pôde organizar seu próprio reisado, abrindo as portas da a sua companhia. Vem de eras de além-mar, desafiando barreiras e perigos, em defesa da justiça para os pequenos contra os poderosos. Entre dramas e comédias, passou a bater nas portas fechadas, abrindo os duros corações. Para traçar novas estradas, conclamando reis sem-terra, galantes e damas deserdados, que dançam, cantam e dizem loas, nos terrenos das casas com portas fechadas, em busca de carta de alforria.
 E quando a porta se abre, tomam assento os Santos Reis do Oriente, fazendo referência ao pobre menino que nascera. A viola entoa o canto e o reisado em louvou ao dono da casa. Depois é o amor que se espalha naquele terreno. “Quando vejo a lua saindo tão alva, me alembra aqueles carinhos, daqueles peizinhos que eu amava”.
 Os olhos de mestre Zuza Cordeiro tinham de brilho como tinham também as espadas As peças dançadas se revezavam com os entremeios, e apareciam as figuras: o velho Anastácio, o Guriabá, Jaraguá abatendo a sua grande queixada e segurando na manga das mulheres, a Zabelinha dançando miudinho, e o Babau espalhando a molecada. No meio de tudo os balizas do reisado: Mateus e Catirina. Malazarte e João Grilo são dois negros atrevidos e astuciosos feitos Cancão de Fogo, a desmoralizar os poderes de Deus e do Governo, a desafiar a seriedade e o comando do Rei e do Mestre, a subverter a hierarquia do reisado, a se meter em tudo sem serem chamados, enfiando o nariz na conversa alheia.
Reisado no Cariri cearense. Zuza Cordeiro prometeu a Padrinho Cícero jamais abandonar a tradição.

 Zuza Cordeiro domina o significado e a fala de cada uma dessas figuras, e sabe que o boi é a figura principal, pois representa tudo que sofre e quer ressuscitar, como o povo que passa por essa aflição. Todo boi tem um nome, e o do reisado (de Zuza) se chama Coração.
 A história de Coração diz que um dia Mateus, por necessidade de vida, foi obrigado a vender seu único boi, justamente Coração, que apegado ao negro velho, não se deu com o novo amo. Sujeitado à canga, caiu de desgosto. Não houve força de padre nem de médico que o levantasse. Até que veio uma cigana e o tornou, porém nunca mais foi boi de carne e osso. Virou boi de costela para brincar no reisado. E assim continuou junto a Mateus.
                                                      Duelo com Silvio Santos.
 Zuza Cordeiro e os antigos mestres do Cariri, como Orlando Tomé, Dedé Luna e Olímpio Boneca receberam o reisado das mãos dos mais antigos. Assim, mostraram ao Padrinho Cícero e dele receberam o ensinamento e o pedido de, todos os anos, festejarem o Menino Jesus. Zuza procurou cumprir com todo zelo a promessa. O reisado é brincadeira santa, obrigação sagrada, mantida por toda a vida, mais de sessenta anos faltar um só. Apresentando-se nas festas de renovação, nos pátios das igrejas, nas praças, nos sítios, nos terreiros abertos na frente das casas.
 Até que na década de 70 a situação piorou e chegou o dia em que Zuza não tinha mais como trajar seu povo. Ao mesmo tempo não queria abandonar a promessa, e o jeito foi apelar para os homens.
 “Eles todos, daqui do Juazeiro, me prometeram a farda do meu pessoal, mas não teve um que chegasse. O derradeiro que me prometeu foi o coronel Adauto e me faltou, todos me faltaram”.
 Foi então que o episódio do duelo com Silvio Santos começou a entrar na vida do Mestre. Ora, Zuza Cordeiro sempre foi homem de muitas artes e, uma noite, assistindo o programa Silvio Santos, descobriu um jeito de apurar dinheiro para vestir sua companhia de reisado. Viu um quadro chamado “Vale Tudo” e resolveu se inscrever. Afinal, suas habilidades eram bem maiores do que as daqueles almofadinhas apresentados. Para Zuza, em arte não havia trabalho difícil, fosse no reisado, maneiro-pau, boneco, mágica, jogo de faca ou brinquedo diverso.
 Deu certo. Zuza espantou-se com o avião e com a zoeira da grande metrópole. Apesar de tudo, manteve a dignidade. Na primeira vez, mostrou umas mágicas. Silvio Santos gostou. Achou engraçado o sotaque do “pau-de-arara”. O produtor aprovou e mestre Zuza Cordeiro conquistou os jurados com a sua simplicidade. Foi para o trono na primeira vez. Dinheiro que é bom ganhou pouco, mas insistiu. Na segunda vez apresentou bonecos. Também deu certo. Resolveu ficar mais tempo em São Paulo, sustentado pelo dinheiro nos dois programas, e arriscar mais.
 Tinha outras coisas para mostrar. O jogo de faca, por exemplo, uma arte perigosa que iria empolgar. Queria ver a cara dos paulistanos. Mostrou sua habilidade ao produtor. Zuza dançando com duas facas encostadas no pescoço. Passos apertados, depois lentos, trágicos. As lâminas brilhantes das facas roçando suas veias, por debaixo das pernas, nas costas, em frente ao rosto e no pescoço novamente, horizontalmente, uma de cada lado. A queda lenta para trás, até a goela encontrar o chão.
 Os homens acompanhavam com os olhos esbugalhados. O ritmo do pífaro (Zuza levou um parceiro) mexia-lhes os nervos. “Que louco!”, gritavam por dentro. Zuza conta como aconteceu: “Não me apresentaram. Penso que eles cismaram com o jogo de faca, do jogo de peixeira, dizendo que ali não podia entrar faca de aço. Respondi que já havia visto artista na televisão jogando faca em cruz nas mulheres. Mas não queria aceitas as minhas, só se fosse de pau. Então apareceu um empregado, irmão do Silvio Santos, perguntando o que eu representava. Mostrei para ele uma porção de mágicas e um pouco das facas. Também só aceitou se fosse de pau, mas com faca de pau o som não sai bem feito. Com medo de me revoltar, não me deixaram falar com Silvio Santos. Ainda fui umas quinze vezes de Campinas para São Paulo mas não teve jeito. Nunca mais deixaram eu me apresentar. Foi até bom porque eu já tava para chamar o Silvio Santos para um duelo”.
                                                       O Mestre.
 Sem conseguir o seu encontro, Zuza retornou para Juazeiro. Nunca mais pôde retomar o seu reisado. Estava ficando velho. Apareceram novos mestres ensinados por ele. Aposentou-se. “ Não foi pela idade, foi pela necessidade”, assegura. “Sou teimoso que só medonho. Com mais de 70 anos de idade, para fazer uma representação assim eu me reforço, tanto para cantar como para dançar, nem que depois eu caia do pinote. O coração tá rimando, nessa hora ou o coração endireita ou desata. Ou endireita ou estopora duma vez! Sou velho assim, mas quando chega no reisado, sendo chamado para uma peça, se o senhor me ver diz: “Não, não é aquele que estava conversando comigo não. É outro”.

   P.S: Oswald Barroso, em 1984, foi atrás do mestre e com ele conversou.

 Também sugerimos o blog "Ser;Voz!", da escritora Gláucia Lima. Reisado, no dia do seu aniversário, é com ela mesmo. Parabéns, Professora:

http://glaucialimavoz.blogspot.com.br/2014/01/dia-de-reis-e-reisado-6-de-janeiro.html?spref=tw

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