Tremembé - Os Índios de Almofala

Litoral norte cearense. A 260 Km de Fortaleza encontramos um distrito já desenvolvido, a procura de sua emancipação, cuja história, porém, alimenta passagens marcantes do povoamento indígena do Ceará.



Capela de Almofala
Consta no livro “História da Província do Ceará”, de Tristão de Alencar Araripe, que o navegador Américo Vespúcio, italiano de Florença, a serviço de D. Manoel, teria avistado pela primeira vez, como representante de Portugal, o litoral cearense no dia 18 de agosto de 1501. Thomaz Pompeu Sobrinho foi mais além. Em “Grandeza Índia do Ceará”, diz que o florentino não apenas avistou como desembarcou nas praias, que segundo a latitude deveria tratar-se das barras do rios Curú (Paraipaba/Trairi), Mundaú (Trairi/Itapipoca) ou Aracati-mirim (Itarema), onde se localizava a antiga aldeia tremembé, depois vila de Nossa Senhora da Conceição e dos Tremembés (1763), e em seguida Nossa Senhora da Conceição de Almofala (12 de setembro de 1766), em contato com os índios locais.

 A origem dos tremembés continua sendo um mistério. Barão de Studart sugere “tronco dos cariris” (que teriam sido expulsos do litoral). Para Pompeu Sobrinho fariam parte da “terceira corrente migratória, oriunda da Sibéria, que alcançou o Novo Mundo pelo estreito de Bering". Na América, teriam largado o Pacífico, estabelecendo-se, no Brasil, no Maranhão, entre São Luís e os Lenções (Tutóia). No Ceará, das faixas litorâneas ao pé da Punaré (Ibiapaba) após lutas contra os grandes rivais tupinambás. Já outra corrente, a qual corroboramos, acredita que faça parte dos humanos oriundos da África, chegados ao Brasil via embarcações simples, cortando o Atlântico, seguindo ilhas após ilhas, há cerca de 110 mil anos. Mais do que etnia, seriam Nação.

Contatos com os Brancos


 Em janeiro de 1604, membros da primeira expedição portuguesa no Ceará, liderada pelo capitão-mor Pero Coelho, tiveram firme contato com os índios, conhecidos pela desconfiança dos invasores, de difícil articulação com os brancos, e pela desenvoltura para a pesca e confecção de machados de pedra, arcos e flechas.

 Provavelmente poupados da morte devido à figura do soldado Martim Soares Moreno, então com dezoito anos e já fluente nos dialetos tupi e tapuia, mestre em relacionamento com os silvícolas e apoiado pelo líder potiguara Jacaúna, os portugueses conseguiram relativa sociedade com os tremembés. Na verdade uma aliança contra os serranos tabajaras-franceses de Ibiapaba.


A Aldeia


 Foi em Almofala, contudo, ao redor do Rio Aracati-mirim, então Acaraú CE (hoje Itarema), onde se desenvolveu uma autêntica aldeia tremembé associada à religiosidade. Após a chegada, em 1702, do padre José Borges de Novais, durante a "Missão Aracati-Mirim", que não era da Companhia de Jesus, ergueu-se, com a ajuda dos primitivos, uma capelinha de taipa, denominada Nossa Senhora da Conceição, a qual guardava uma imagem, dourada, chamada "Labareda", a "Santa D'oiro", que teria sido encontrada na praia por índios, provavelmente oriunda de um galeão espanhol naufragado. Os nativos se encantaram e a idolatraram.

 Em 1758, conforme recibos de prestação de serviços, ocorreu a primeira reforma da capela, mas somente no início do Século XIX a construção passaria a se constituir de alvenaria, tijolos, telhas, piso e forro de cedro, cuja matéria-prima, cedida pela Rainha de Portugal, Maria I, nascida em 1734. Ao tomar conhecimento da imagem, a monarca propôs a troca, secreta, por outra e uma nova arquitetura da igreja. Assim, partiu de Salvador um navio até Acaraú, sendo que os próprios moradores a construíram. Conforme Maria Amélia Leite, da "Nação Tremembé", "a argamassa que uniu as paredes foi feita com o pó das conchinhas, dos búzios do mar". Segundo Antônio Bezerra, que esteve no local em 1884, registrando em "Notas de Viagem ", o formato da atual igreja foi concluído em 1802.

A Invasão das Dunas



Período de 45 anos invadida pelas dunas
Com a invasão das dunas, a partir de 1898, soterrando o templo até 1942, o pároco da época (de Acaraú), Padre Antônio Tomás, após missa às 4:30 horas da manhã, em outubro de 1898, teve que levar o restante das imagens (as primeiras teriam sido retiradas no ano anterior) e o sino para Acaraú, a fim de impedir que fossem junto no soterramento da capela e parte da aldeia pelas dunas. Os índios trataram como “roubo”, embora o padre tenha justificado insistentemente durante as missas, e deixado escrito a sua versão. Segundo os primitivos, a verdadeira imagem, a do altar, nunca retornou, podendo estar no Museu Diocesano D. José, em Sobral, entre as que não possuem nome, verdadeiro descaso, pois até do sino original sente-se falta, e cujo som se foi com o testemunho dos moradores, falecidos. Consta catalogado no museu, entretanto, a porta de um sacrifício, em forma de cálice, talhada em madeira, com 51 cm, do Século XVIII. As demais reclamada seriam de N. Sra. do Rosário (de 77 cm, provavelmente cópia da "Labareda" sumida), São Miguel Arcanjo, São Benedito, São José e da própria N. Sra. da Conceição.


Tombamento


 A partir de 1954 passou a pertencer à Paróquia de Itarema, aos cuidados do Padre Aristides Andrade Sales, da Diocese de Sobral, posteriormente prefeito de sua terra, Acaraú. O que não impediu o seu abandono, pois foi necessária a intervenção do IPHAN para a sua recuperação, em 1984, quando foi tombada.


Foto Jornal O Povo 1992

 Os Estudos do Professor Silva Novo


Os encantos desse povo se tornaram evidentes a partir da publicação, em 1976, de “Almofala dos Tremembés”, de José Silva Novo, pela Gráfica Editorial Cearense. Natural de Trairi CE, o Maestro e Professor Silva Novo, enfrentando precariedades de toda ordem, notadamente logísticas, devido às dificuldades para se chegar à localidade, estudou aquele povo, de maneira presencial, a partir de 1964, aprendendo e traduzindo seus dialetos, além de publicar partituras oriundas de suas danças, o “Torém”, a “Aranha”, e o “Coco Praieiro”. O primeiro com nítidas influências do canto gregoriano, portanto dos primeiros missionários. A “Aranha”, caçula, de ritmo mais lento, foi levada pelo padre Francisco Mossoró (RN), em 1954.


 Na época com cerca de trezentos habitantes, Almofala recebeu o visitante com receptividade. Silva Novo aproximou-se de Tia Chica, nativa, 99 anos, cega de catarata, de quem enriqueceu seus conhecimentos sobre os tremembés. Dela vieram as lembranças dos 45 anos do soterramento da capela, do sumiço da Santa (e briga por ela), da lenda do Guajará e as reclamações sobre a “chegada da civilização”.


Itarema e seu lindo litoral (Folha do Ceará)

 Consta que “Guajará” era uma espécie mística como o Saci e a Caipora, que, embora “invisível”, morava nos mangues do Aracati-mirim, “buliçoso” e às vezes “maléfico”. A velha dizia que o medo maior vinha quando ele usava “forças” que “seguravam as pessoas”, impedindo-as de prestarem um serviço. Ela relatou ainda o testemunho, ao lado de sua neta, de visões de um navio enorme, com cerca de “duzentos metros”, que surgia na “risca do mar”, sob forte luminosidade: “o mar começava a rolar como que querendo devorar a nossa Almofala”, memoriza, e então rezava para Nossa Senhora dos Navegantes e a imagem desaparecia. Eis aí uma superstição que lembra a fé cristã, não fugindo à utopia do fanatismo, dos religiosos nordestinos.



Tremembés no Festival


O Torém, por Silva Novo
Encantado com o ineditismo daqueles índios, Silva Novo, que trabalhava em Itapipoca CE, conseguiu apoio do prefeito (Antônio Martins), para que os praianos conhecessem as ricas reservas culturais do município, como a Pedra Lascada, além dos seus irmãos tremembés do interior (adeptos do candomblé). Mais do que isso, preparou-os para o Festival de Folclore do Ceará, de danças regionais, à frente o folclorista Florival Seraine, patrocinado pela UFC e Secult CE em dezembro de 1965. Na Concha Acústica de Fortaleza lotada, tiveram a concorrência da Banda Cabaçal do Crato CE, Dança de São Gonçalo (do Amarante CE), Bumba Meu Boi, O Boi dos Reis e da alagoana O Coco. Pintados de urucum, e com poucas vestimentas tucuns, os tremembés, incluindo Tia Chica, adentraram ao palco sob o silêncio do público curioso. Sucesso e aplausos intermináveis lhe deram o prêmio maior. As quinhentas partituras do Torém que Silva Novo levara foram disputadas pela plateia, tendo o maestro resumido em seu livro: “Vitória!”. Essas músicas foram resgatadas pelo Grupo de Tradições Cearenses (GTC), que as lançou em CD, apresentando-as em formas teatrais.

 Questões de Terras


Em 1992, com as terras invadidas por colonos (na época uma reserva de 4.000 ha registrada em cartório), os nativos enfrentaram o maior dos problemas. Ameaçados de morte, notadamente o cacique João Venâncio, lutaram contra os brancos, ainda que muitos tenham fugido. Foram necessárias as intervenções da CNBB, Funai e Ministério Público para contornar a desavença.


Jornal O Povo, 29/11/1992

 Enfim, a perfeição do Dr. Adalberto Barreto (O Povo, 1/12/1992): “Tirar o índio de sua terra é como tirar o peixe da água, o cancão da mata, a aranha de sua teia. E enquanto ainda restam alguns índios resistindo a morrer, vamos emprestar-lhes nossa vozes, cantando com eles o Torém para lembrar ao homem caçador de homens que não pode haver vida lá onde não há harmonia, lá onde o homem não se alia com a natureza”.

 E eu, nos meus sonhos, no navio de Tia Chica, sem ondas, iluminado sim. Luzes infinitas, para todos os índios, para todos os povos.

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