Os Lucas e a Praia dos Encantos

                                           

 No inicio dos anos noventa Trairi (CE) ainda rastejava em busca de progresso. Asfalto para localidades mais distantes e menos povoadas era um sonho. Uma delas era a praia de Guajiru, local onde, segundo meus estudos, naufragou, na sua costa, o barco da portuguesa Maria Furtado, certamente a mulher mais importante da história do município. E nem sei se existe uma rua em sua homenagem.
O veículo para o transporte da comunidade e dos turistas era a pick-up do Chico Abel, movido a gás de cozinha. O cheiro do combustível deixava muita gente enjoada, sendo que muitos provocavam. Das Flecheiras para lá o caminho era pela beira da praia, quando a maré estava seca, realmente uma aventura. Por isso a galera ia preparada, com muito mel.
Mas eu preferia a maneira tradicional, como faziam meus avós e tios: ia por cima dos morros. Vovô Joaquim, já cansado, incumbia os filhos mais velhos para a tarefa de comercializar com os pescadores de lá. E os rapazes voltavam carregando os peixes no calor e fofura das areias, percurso que durava quase duas horas quando o carregamento era pesado.
Eu, jovem, andava rápido, que nem meu falecido tio Zé Lucas, apreciado atleta, gastando mais ou menos uma hora quando ia sozinho. Às cinco horas tomava o café no meu avô materno, Cassimiro, e saía no rumo do sítio Boa Esperança, onde sempre me encontrava com o tio Antônio Lucas e o saudoso Manoel Barroso, ex-prefeito, cuja profissão era agricultor de enxada. Eu tinha uma namorada lá e contava os dias, em Fortaleza, para as aventuras nos feriados e fins de semanas. Muitas vezes chegava à casa dela e a acordava com um beijo.
O vínculo de amizade com as únicas famílias de Guajiru vem desde que chegaram de outras terras, há muitos anos, quando nosso bisavô Manoel se recolheu às margens do Rio Trairi. Naquele pedaço de terra, entre dunas e coqueirais (foto), amigos Neco e Moço (Guajiru), os mais velhos, têm histórias incríveis dos Lucas, como as brincadeiras, farinhadas, esportes, política...Estavam sempre em Trairi e Jenipapeiro comercializando, bem ao estilo escambo. Muito me enriqueceram, acima de tudo com o acolhimento amistoso, fraterno, além de me repassarem um pedaço da história do município.
Certa vez eu ia de Trairi com o quase irmão Vicente Moço quando avistamos um casal, umas crianças e um rapaz, num ponto distante, mas no caminho errado. Não achávamos que iam para o Guajiru.  Eu e meu amigo ríamos e gozávamos da família viajante: “Vicente, aquele povo ali só pode ser turista. Como é que preferiu “arrudiar” o morro para depois ter que subi-lo?” Então o Vicente me orientou: “ Tu fala baixo que eles podem está nos escutando”. Não entendi, mas depois descobri que o vento carregava as ondas de nossa fala.
Não é que depois de certo tempo o pessoal aportou na casa do Campelo Neco , morto de cansado e de sede? E o pior, quando dei por mim vi que era parentada: Fleury, sua esposa Mazé Andrade (nossa prima, criada e educada pela minha tia Ritinha Lucas, professora), as duas criancinhas e um irmão dela, acho que o Zé, falecido. Pior, eles escutaram parte da minha conversa, de modo que o Fleury, quando me viu, foi logo soltando:” Junim, eu prefiro ser o maior “fela” se ainda venho pra cá pelo morro, isso é serviço para corno!”

Contei para o Vicente Moço, que riu muito - e se diverte até hoje por conta disso. Comerciante e pescador aposentado, mandou preparar uma peixada e convidou toda a turma para uma tarde na sua humilde casa, com redes e água de coco à vontade. E obviamente que eles voltaram no carro do Chico Abel. Já eu pelas dunas, sozinho, mas com Deus no coração, em meus sonhos, encantos que continuarão em outra vida.

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