Câmara Cascudo - Uma Obra que Resgata a Memória Brasileira
Jornal Diário do
Nordeste, 1 de agosto de 1986. Matéria sobre o historiador potiguar, falecido dois
dias antes:
“É bem provável que o
Séc. XXI no Brasil dependerá da materialização de sua obra na cultura e
civilização, das águas aos ares, não há assunto que o maios etnólogo da terra
não tenha pesquisado com rigor e requinte”. É o que diz um artigo publicado há
cerca de um ano pelo jornal Folha de São Paulo sobre o grande cientista popular
nordestino Luís da Câmara Cascudo, que foi enterrado ontem (31/07/1986) no cemitério
do Alecrim, em Natal RN (onde passou toda a vida).
Escritor,
folclorista, etnólogo, historiador, geólogo e filólogo, Câmara Cascudo
pesquisou como ninguém as raízes da nossa cultura. Morreu aos 87 anos, de
parada cardíaca. Tinha uma isquemia coronária e os médicos descobriram sintomas
de diabete e distúrbios neurológicos. Ele passou boa parte de sua vida
internado e chegou a escrever um livro: “O Manual do Doente Aprendiz”.
VIDA/OBRA
Câmara Cascudo é dono
de uma extensa obra. Mais de 100 livros, além de cartas e plaquetas. Falando sobre
ela, disse: “Vida e obra estão sempre interligadas. Não vejo como não podermos
nos separar. Minha vida é toda dedicada ao contexto cultural. Mas tenho como
base a vivênia, pois vejo no meu trabalho literário a minha vida. Vivendo cada
momento como se fosse o último. Vou trabalhando com a equidade de cada novo
livro. As coisas vão fluindo normalmente. Acabamos de escrever uma crônica, por
exemplo, redescubro a juventude das palavras. É aqui descubro também a minha
juventude”.
E Câmara Cascudo escreveu até o fim da vida, desde 1918. Afirmamos conhecedores de sua vida que na
história da criação brasileira não há outro sábio como ele, assim como nenhum
mestre estrangeiro. Culto, erudito e sabedor de muitas línguas que sequer
chegaram ao conhecimento do homem, escreveu grande parte de seus livros baseado
em suas próprias observações, simplesmente no que via e ouvia.
A PANELA
Em seu livro “Canto
do Muro”, escreveu: “passei parte da adolescência no sertão oeste do Rio Grande
do Norte, pela região do Seridó e nas ribeiras do rio do Peixe e Piancó, antes
das rodovias e da luz elétrica. As velhas estradas eram paralelas e não
perpendiculares ao litoral”. Também escreveu que “a imagem síntese da
alimentação antiga era a panela. Da moderna é o abridores de latas”. E outro livro seu, “Gente
Viva”, ele fala da gente morta e da visão do brasileiro em relação à morte: “morrer
devagar, morrer depressa. Se possível em casa, não no hospital”. Em sua obra
estão todos os traços culturais comuns a brasileiros do Brasil inteiro. Ele
conseguiu como ninguém encontrar tudo que o sulista, o nordestino e o nortista
têm em comum.
No folclore ele é
maestro. Autor do mais conhecido dicionário folclórico, onde explica a origem
dos rios, palavras, costumes, mitos, lendas, crendices e até explica como no
Brasil o real vai além do possível, os malucos conversam com os espíritos,
enfim, o cotidiano do nosso folclore, onde “a morte existe, os mortos não” .
Biblioteca Particular |
Villa Lobos viu em
Câmara Cascudo o “artista mais completo da raça” e em um retrato seu escreveu
uma dedicação dizendo: “que boa testa para levar um cascudo”. Para evitar esse
trocadilho em torno se deu nome, ele explica a origem do livro “O Tempo e Eu”,
que conta a história de todas as criaturas. De acordo com o livro, Cascudo não
é o coleíptero, mas um peixe de lóca, acariprecostomus, loricariae...
Nascido no mesmo ano
em que chegaram ao mundo Lampião e Luís Carlos Prestes, em 1898, Câmara Cascudo
era um homem de posições firmes e grande visão do mundo. Uma vez escreveu que “navios,
aviões, rádios permutam os produtos do mundo. A cultura popular fica sendo o
último índice de resistência e conservação do nacional ante o universal que lhe
é, entretanto, participante e perturbador”.
VIVÊNCIA CULTURAL
Cascudo sempre esteve
ligado “em qualquer parte do mundo cultural”, mesmo nunca tendo saído do
Nordeste. Falando sobre a juventude, diz que ela está buscando uma vivência
cultural: “Não acredito que a alienação possa vincular um meio. Os jovens estão
preocupados com o mundo de hoje. Os fatos vivenciais estão influenciando
bastante. As escolas já não têm uma preocupação básica com a literatura. Minha
aprendeu a fazer poesia por conta própria. Na escola, ela aprendeu a utilização
da escrita como forma. Na vida, ela vai aprendendo as nuances vivenciais, que
vão servindo como base para sua trajetória poética. A juventude precisa
encontrar o caminho da linguagem própria”.
BC homenageia Cascudo nos Anos 90 |
CONTRIBUIÇÃO
Sem preconceitos e
insinuações, ele mantinha uma eterna juventude espiritual, aberto à compreensão
de todas as novidades e tendências. Cercado de livros, sempre viveu em
constante sintonia com o que acontecia no Brasil e no mundo. “O precioso da história
contemporânea é a documentação para o futuro e não o juízo decisivo e
peremptório. Todos os contemporâneos para o bem e para o mal, são testemunhas e
não juízes ou advogados. Todos testemunhas. O futuro estudará, conformará e
dará a sentença. Muita gente pensa que a história é uma velhinha amável e
covarde que aceita, por preguiça e senectude, as decisões dos contemporâneos.
Todos nós julgamos escrever a História, quando apenas escrevemos para a
História”.
Com essa lucidez,
Câmara Cascudo, sem dúvida, deu a sua contribuição para a História. E é bem
provável que no Século XXI a sua obra esteja contribuindo para a formação das
brasileiras.
Diário
do Nordeste, Fortaleza CE, 1 de agosto de 1986
Para conhecimento
sobre o pesquisador natalense, com Sandro Fortunato:
http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm
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