Santo Sepulcro - A Última Estação da Utopia Sertaneja - Texto de Oswald Barroso
Oswald Barroso |
Uma légua após o Horto fica o Santo Sepulcro, última estação
da romaria, onde só os peregrinos mais fervorosos vão. Da grande estátua de
Padre Cícero até lá, uma légua de caminho a pé por uma estreita e tortuosa
vereda. No final do caminho, um sítio povoado de pedras, cruzeiros, grutas,
pequenos altares e algumas sepulturas. Lugar de recolhimento e oração do Padre
Cícero e de antigos beatos. Lá, longe do controle das instituições, os romeiros
dão asas à magia de sua imaginação e vazão ao sentimento messiânico da grande
utopia.
Dentro do mundo, tem
o Nordeste, lugar de abandono e miséria. Em qualquer ponto há um caminhão, um
pau-de-arara com dez tiras de tábuas cortando a carroceria. Você sobe no
caminhão e ele parte. Lá estarão outros romeiros. Ele atravessa latifúndios,
engolindo as estradas e recolhendo pobreza. Quando vier o cansaço vocês cantem
um bendito e passa toda a fadiga. Até que chega um lugar verde chamado Cariri.
Dentro do Cariri está
o Juazeiro do Norte, a terra santa do meu padrinho Padre Cícero. Quando virem a
igreja matriz da Senhora Mãe das Dores, vocês desçam do caminhão. Soltam
foguetes e entram na igreja. Dentro da igreja vocês rezam o rosário azul e
branco da santa. Depois saem e, junto com os seus, se hospedam num rancho de
romeiros. Armam as redes ficam conversando com os nordestinos de outros
lugares. No almoço, vocês dividem a comida. Esta é a segunda estação.
Depois vocês vão
visitar a Praça do Socorro. Dentro da praça existe uma capela e dentro da
capela o túmulo do meu padrinho Padre Cícero, se ajoelham e oferecem o ex-voto,
flores ou qualquer objeto de devoção. Do outro lado da praça está a Casa dos Milagres.
Vocês vão até lá, armados de fé. Dentro dela, em cima de um monte de outros
ex-votos, vocês colocam os milagres que trouxeram, como sinal de que estão
agradecidos ao santo de Juazeiro.
Em seguida, saem da
praça e caminham por ruas estreitas até chegarem na casa onde morou Padre
Cícero. Lá existe um museu. Vocês entram. Caminham primeiro pelo lado esquerdo.
Lá estão os objetos do meu padrinho: a cama, a batina, o bastão, o chapéu. Numa
sala grande ao fundo está o modelo da igreja que iria ser construída por ele no
Horto, e que foi proibida pelos poderosos, porque era parecida com um forte. Em
um quarto mais atrás está a mesa do Padre Cícero. É uma mesa grande e pesada.
Tentam levantar, cada qual por sua vez. Depois saem. Tomam água e voltam pelo
lado direito. Atravessam três salas, cada qual cheios de objetos maravilhosos.
Animais da terra e do mar, pedras preciosas e tesouros antigos. Vocês admiram
tudo, porque tudo ali foi sagrado pela mão do Padre Cícero. Terminada a visita,
vocês vão embora. Esta foi a quinta estação.
A seguinte fica mais
longe, não é obrigatória. Quem quiser ir precisa atravessar a cidade. Chega
numa grande praça, conhecida como dos franciscanos. Ao redor da igreja e do
convento existe uma muralha alta, com um passeio em cima. Para subir na
muralha, vão lhes cobrar dinheiro. Vocês cospem de lado, esconjurando a
Besta-Fera, mas se quiserem andar no passeio, ainda não há outro meio senão
pagar. Pagam e arrodeiam os franciscanos, por cima da amurada. Chama-se passeio
das almas.
Na volta, passam por
uma grande igreja, que tem um barrete de prata na cabeça. Vocês não olham para
ela porque é a igreja da Besta-fera. Seguem caminho. Vão em direção à estátua
branca do meu padrinho. É fácil, porque ela fica em cima da serra do Horto. De
longe todo mundo vê. A última estação da caminhada.
Estátua de Pe. Cícero - Juazeiro do Norte, Ceará |
Na serra do Horto
fica a estátua branca do “meu” padrinho, mas também fica o Santo Sepulcro. Uma
légua de distância separa os dois. É
sobre esta última estação que eu vou lhes falar: dentro do Horto está o meu
padrinho Cícero. Dentro do meu padrinho está o romeiro. Dentro do romeiro tem
uma pedra, no lugar do coração.
O SANTO SEPULCRO
Nesse lugar não havia
nada. Tudo foi criado, tudo foi tirado das pedras pelo povo. Elas são como as
pessoas e as coisas, feito um coração duro. Uma vontade de ferro, uma argamassa
unida. Com as mãos, nela se lê e se escreve. Ao longo dessa vereda estreita,
que cruza abismos, está gravada a memória do povo romeiro. Do Horto, meu padrinho
rumou para o Santo Sepulcro, mas antes despejou lágrimas na Pedra das
Oliveiras.
Romeiros, pedintes e
mascates se confundem no formigueiro de gente, vaivém de légua tirana no
labirinto da serra. Dos barrancos, o algodão mal brotado dos roceiros se
precipita sobre o caminho. Lá embaixo, espera resplandecente a cidade do Crato.
A multidão, entretanto, só tem olhos e mãos para o caminho.
Aleijados, cegos,
noivas abandonadas, vendedores din-din e de tijolinhos de coco; raizeiros,
guerreiros com espinhela caída. O romeiro divide com uma fila de pedintes sua
miséria: uma moeda para cada um. Crianças famintas, epilépticos. Um mendigo de
barbas longas e sujas ironiza os fotógrafos: “Eu vou sair bonito, eu vou sair
muito bonito na televisão!”
Ramos verdes,
florezinhas silvestres, pedra areia, chão sagrado. Os romeiros carregam a
lembrança do caminho. A mulher fala com a linguagem do meu padrinho. Acaricia o
seu rosto duro, toca nas suas mãos de pedra. “Eu lia a vida do Padre Cícero e
as lágrimas corriam”. Um rosário de pedra e os cruzeiros plantados sobre eles.
“Ái que caminho tão longo, cheio de tanto arrodeio! Ái que caminho tão longe,
cheio de pedra e areia!”. Comboio de gente se enfiando por entre as pedras,
entrando por dentro delas, carregando as pedras na cabeça.
RESSURREIÇÃO
A romeira alagoana
era baixinha e vestia uma bata azul clara de beata. Durante todo o caminho
agarrou-se nos benditos. Chegou alegre e feliz. De joelhos se arrastou por
entre as pedras. Até que chegou a uma muito grande, com uma rachadura que a
fendia bem no centro. Os romeiros atravessavam as fendas, equilibrando-se no
alto da pedra, cada pé num lado da rachadura. No final, saltavam de cima para o
chão. Era uma travessia difícil.
Santo Sepulcro |
A romeira alagoana
estava no meio da fila e chegou a sua vez. Com determinação se lançou dentro da
abertura. Quem conseguisse atravessar sairia no outro lado com a alma leve. A
romeira meteu seu corpo raquítico por entre as duas paredes de pedra e sumiu-se
dentro da rachadura. Os outros lhe advertiram do perigo. Ela respondeu que, com
fé em Padre Cícero, medo não conhecia.
Se infernou mais
ainda no interior do rochedo, até que a fenda estreitou-se, de modo que só
tentou abrir caminho. Suas vestes se rasgaram contra o granito. Rogou três
vezes a ajuda do meu padrinho e continuou a fazer força em direção à saída. A pedra,
porém, se fechou sobre seu corpo e a mulher, asfixiada, confessou que já lhe
faltava o fôlego. Não perdeu a serenidade. Conseguiu soltar um braço o levantou
para o céu. No alto da pedra, vendo a aflição da mulher, um menino, filho do
romeiro que vinha atrás dela, enfiou a mão pela abertura e segurou seu braço.
Puxou com força e conseguiu resgatá-la. Saída de dentro da pedra, a romeira
agradeceu três vezes. Bendito seja o braço do menino, bendito seja quem
escreveu pela mão do Padre Cícero, bendito anjo que abriu a porta do sepulcro
para o meu corpo ascender à luz.
Prof.
Oswald Barroso é jornalista, teatrólogo e escritor. Matéria publicada no jornal O Povo (Fortaleza, CE), em 24/06/1984.
Companheiro, obrigado pela publicação!
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