Padre Cícero - Mais Piedoso que a sua Igreja (Fenelon Almeida - O Povo)
“Padre Cícero Missionário” - Jornal O Povo, 8 de julho de 1984. Texto: Fenelon Almeida
Seminarista em Fortaleza |
Os mais velhos se
sentem felizes por terem convivido com o missionário, enquanto os mais jovens,
que não o conheceram pessoalmente, se sentem ansiosos por usufruírem a fortuna
deixada pelo sacerdote. Foi pensando nela, na juventude e no futuro, que Padre
Cícero destinou toda a sua riqueza, para que os salesianos fundassem e
mantivessem, em Juazeiro, um complexo educacional-religiosos doa mais modernos
e eficazes, como continuam fazendo, por bondade expressa do doador, à formação
religiosa e profissional da infância e da juventude carentes de todos o
municípios do vale caririense. Quanto ao revolucionário, não sabemos por que
ele não chegou a nascer. A verdade é que tudo não passou de um equívoco. Dele
não ficou marcas em Juazeiro.
Nesta reportagem, ao
ensejo do cinquentenário da morte física do grande benfeitor, queremos enfocar
apenas o missionário. Esperamos que o presente trabalho, desenvolvido com
absoluta honestidade, em que pese as suas limitações, possa evidenciar até onde
Padre Cícero acertou como missionário, e onde errou e por que errou algumas
vezes.
MISSIONÁRIO
A vida missionária do
Padre Cícero começou a partir de um sonho que teve um pouco antes de ordenado
padre. “Sonho visionário”, diz o escritor norte-americano Ralph Della Cava.
“Sonho fatídico”, assegura o padre Azarias Sobreira, outro biógrafo do Capelão
de Juazeiro. Na aparência, os dois parecem certos. Mas, na realidade, talvez
nenhum tenha dito a verdade. Por que “visionário”? Por que “fatídico”. A rigor,
a distância entre visionário e homem de visão é um passo. Questão apenas de
sorte, de oportunidade. É lançar no escuro, atirar a flecha...e acertar na
mosca ou errar o alvo.
Matéria do Blog (O Povo) |
Quando se faz uma
afirmativa ou projeta um plano, e dá certo, Sêo Fulaninho passa a ser um homem
de visão, um gênio criativo ou um talento realizador. Quando, porém, o que dia
ou pensa não dá certo, quando tudo se reduz a uma visão fugida, algo realizável
mas não realizado ou que nunca chegará a realizar-se, então o cidadão Fulano
muda de figura. E logo acoimado de visionário, de gente que vive no mundo da
lua, em vez de ser daqueles que firmam os pés bem plantados na terra. Seguindo
esse raciocínio, podemos afirmar que Padre Cícero teria sido as duas coisas ao
mesmo tempo: vidente e visionário. Dentro do seu tempo, talvez não tenha sido
mais do que um incorrigível sonhador, um visionário impenitente. O futuro,
porém, reservou-lhe tão agradáveis e tão desagradáveis surpresas, tão
tenebrosos escolhos e tão luminosas passagens, ao ponto de a História, mais
tarde, haver-lhe conferido o título imerecido de homem de visão.
Imerecido porque, na
realidade, ele não foi mais do que um grande sonhador. Um sonhador que viu
acontecer quase tudo o que sonhou. Mas é que os fatos simplesmente aconteceram
. Contra ele, alguns; outros, a favor.
SONHO E REALIDADE
Como todos os
sacerdotes do seu tempo, Cícero Romão Batista vivia imerso em sonhos, em
devaneios, com muita vontade de acertar, mas, na verdade, perdido entre as
duras realidades que o cercavam. Embevecido com certa Teologia que lhe
ensinaram no Seminário, passou a acreditar mais em sonhos do que nas coisas
objetivas da vida, vivendo com a mente povoada de visões beatíficas, pensando
no Céu, no Inferno e no Purgatório, almejando obter indulgências plenas ou
parciais, trazendo ao pescoço medalhas bentas e escapulários, recomendando
novenas e comunhões eucarísticas, durante nove primeiras sextas-feiras
seguidas, fazendo e pagando promessas a este ou àquele santo.
Depois que saiu do
Seminário, ele penetrou em cheio na chocante realidade da vida social do seu
tempo e do seu meio. E aquelas visões abstratas do passado, de seus compêndios
de Teologia Dogmática, se vieram juntar, numa justaposição confusa, num
emaranhado quase impenetrável, os quadros vivos da miséria social do meio em
que passou a viver. E esses quadros de pobreza, de fome, de nudez e de
analfabetismo chocaram profundamente a alma ingênua do cândido levita. Foram embaralhar-se
em sua mente, confundindo-se com os sentimentos de religiosidade de sua
formação sacerdotal. Por isso, sua vida missionária nasceu de um sonho, sonho
mesmo, psicobiológico, brotado do subconsciente, mas que foi por ele
considerado profético. A rigor, nem visionário, nem fatídico, nem profético.
Vejamos como foi seu sonho.
PREDESTINAÇÃO
A verdade é que esta
visão definiu de uma vez por todas um gênero de vida para o jovem sacerdote,
modificando-lhe todos os planos anteriores, de levar uma vida diferente, na
capital ou noutra cidade. Ele havia pensado em viver longe daquele ambiente de
confinamento social e de total carência de vida cultural condigna. Aquela
capelinha consagrada a Nossa Senhora das Dores, perdida naquele recanto do
município de Crato, não era o que ele, a princípio, ambicionava. Estava em suas
cogitações transferir-se, de volta, para o Seminário da Prainha, onde não lhe
seria difícil uma cátedra de Professor do Curso Menor. Entretanto, o sonho de
agora foi a derrocada de todo o seu plano anterior.
Velório de sua irmã (Memorial Pe. Cícero) |
Até aí nada de
extraordinário para o espectador solitário, que continuava atento à cena.
Quando, porém, Jesus levantou-se para falar aos seus discípulos, um bando de
camponeses maltrapilhos, sujos, rasgados e famintos, entrou de repente na
escola, interrompendo o sermão, que não chegou sequer a iniciar-se. Aos olhos
do Padre, aquele bando de miseráveis, de homens, mulheres e crianças, dava a
impressão de que eles estavam chegando de uma longa viagem pelos caminhos do
sertão. Traziam muita poeira nos pés e na roupa, trouxas na cabeça e sacos às
costas, como se estivessem de mudança, carregando nos ombros todo o peso que
lhes pertencia.
Arquivo Memorial Pe. Cícero |
O padre guardou esse
sonho em segredo por alguns anos. Um dia, porém, confiou-o a uma amigo,
dizendo: “Com essa ordem acordei e não vi mais nada; mas pensei um pouco e decidi,
mesmo errado, obedecer”. Estava traçado o seu destino. Padre Cícero foi ao
Crato, juntou todos os seus pertences dentro de uma mala e alguns caixotes, e
mudou-se definitivamente para Juazeiro, trazendo sua mãe viúva e duas irmãs
solteiras. Foi morar numa pequena casa coberta de palha, defronte à Capela de
Nossa Senhora das Dores. Ali passou a exercer o seu ministério sacerdotal
inteiramente voltado para os pobres. Morava no meio deles, protegendo suas
almas das “tentações do Demônio” e suas vidas das “ciladas dos homens”. Tudo
como lhe fora predestinado em sonho, com “recomendações expressas do próprio
Jesus Cristo”.
CONFLITO DE IMAGENS
Em sã consciência,
não se pode afirmar que o sonho do jovem tenha sido um sonho visionário, como
afirma Della Cava, e, muito menos, fatídico, como fazia crer o padre Azarias.
Que não foi visionário, é fácil entender por que não. A própria vida
encarregou-se de tornar esse sonho ou desejo do Padre Cícero uma esplendorosa
certeza. Juazeiro aí está. E o sonho do Patriarca tornado realidade. Acaso
alguém poderá pensar que Juazeiro vem a ser uma realidade fatídica para o Ceará
e para o Brasil? Essa pergunta dispensa resposta.
O termo fatídico foi
empregado com a melhor das intenções por aquele outro piedoso sacerdote
pertencente ao clero cearense. Talvez porque Padre Cícero, ao procurar seguir o
roteiro traçado no sonho daquela noite de cansaço, entrou, mais tarde, em
choque com o seu Bispo diocesano. Este o ameaçou e cumpriu a ameaça, promovendo
contra ele um processo canônico de excomunhão junto à Santa Fé.
Ora, se o Padre
Cícero tivesse se intimidado diante da ameaça do Bispo de Crato, ou houvesse
esquecido o seu sonho, dando as costas para o povoado de Juazeiro e seus
humildes romeiros, os fanáticos e fanáticas que o cercavam e o endeusavam, com
certeza ele não teria realizado a sua obra – uma obra ciclópica que hoje enche
de orgulho o Ceará e o Nordeste. Juazeiro do Norte, hoje Juazeiro do Padre
Cícero, é o fruto daquela desobediência. Por outro lado, a cidade do Padre
Cícero também não foi, nem jamais poderia ter sido o resultado de um sonho
visionário. De um sonho profético também não. A tanto, não devemos levar o
nosso conceito, pois, se foi uma quase profecia, também não deixou de ser fruto
de impressões conflitantes recalcadas no subconsciente pela porta aberta do
sonho, numa porta aberta de sono profundo, depois de um dia inteiro de muito
trabalho e cansaço.
NOVO MESSIAS
Houve, realmente,
muito fanatismo ao redor do Padre Cícero. O quadro mais terrivelmente mal interpretado
de toda a sua vida missionária. Um exagerado fanatismo, mas que ele não
estimulara, com o fim exclusivo de criar proselitismo político ou religioso, de
querer arrebanhar os seus fanáticos e fanáticas em proveito próprio, como
insinuou o major Rocha. Ao contrário, Padre Cícero sempre teve um conselho a
dar, uma dúvida a esclarecer, uma orientação a oferecer, um perdão a dispensar.
Fazia com que aqueles deserdados da sociedade esquecessem os erros cometidos e
às injustiças recebidas, aceitando uma penitência e uma palavra de perdão, para
apagá-los da memória. Dispunha-os a entenderem que também erraram e, por isso,
precisavam reparar o erro, recomeçando uma vida de amor.
Beatas de Padre Cícero |
Foi de tudo isso que
se forjou a imagem do Padre Cícero como um novo Messias aos olhos dos romeiros
nordestinos de Nossa Senhora das Dores. Ele tinha uma palavra de conforto para
todos, um conselho sensato, um gesto de paz e de perdão, ou, simplesmente, a
sua benção sacerdotal. Foi isso, tão só isso, o que cativou milhões e os fazia
prostrarem, como autômatos, aos pés daquele pequeno sacerdote de batina surrada
e gestos largos de compreensão.
Padre Cícero era
pequeno na sua estatura física, mas, para eles, tinha a dimensão de um deus, um
crescimento que se fez lentamente, não da noite para o dia. Gradativa,
imperceptível, constante e ininterrupta, essa metamorfose se fez lenta, própria do surgimento dos
grandes líderes. Até que, finalmente, viu-se Padre Cícero transformado em um
novo Messias, num verdadeiro ídolo aos olhos daquele povo bom e crédulo.
DEUS E DEMÔNIO
Ao lado de autoridades como Floro Bartolomeu, fazendeiro e político |
Para aquela gente ignara, que nada entendia de Teologia nem de Evangelho, mas sentia na própria carne o sofrimento que o Padre procurava amenizar, para muitos deles “Padim Ciço” passou a ser uma das três pessoas de uma nova santíssima trindade por eles criada: Deus - Nossa Senhora das Dores - Padre Cícero. Ele não queria isso, sempre disse nunca haver querido isso. Não os incentivou diretamente ao fanatismo e, muito menos, ao endeusamento de sua pessoa. Errou, porém, porque mesmo excluindo-se da santíssima trindade, que se forjou na Nova Jerusalém, fruto da ignorância daquela gente, não passou ele também uma esponja naquela crença absurda de que todo sacerdote católico é um outro Jesus Cristo aqui na Terra, um legítimo representante de Deus, que lhe teria outorgado todo o poder de perdoar pecados e de fornecer passaporte indulgencial para a entrada direta no Céu. Era isso o que o clero ensinava ao povo. “O que o padre ligar na Terra será ligado ao Céu, e o que desligar aqui será desligado lá também”. Era isso o que mais ciosamente era doutrinado aos profitentes do Catolicismo. Não a redenção de que nos fala o Sermão da Montanha, mas, sim, uma redenção que encobria interesses escusos. Não a salvação pelo poder do Cristo que habita cada um de nós - Cristo-redenção, teo-redenção. Para eles, analfabetos das Bem-aventuranças, só o poder do padre era capaz de levar alguém ao Céu. Era a clero-redenção. Isso o que a Igreja ensinava. E Padre Cícero, fiel aos ensinamentos, não teve força nem vontade suficientes para coibir o fanatismo que iria fatalmente redundar no seu endeusamento por aqueles que o amavam. É que ele próprio também acreditava na sua função sacerdotal de outro Cristo. Só não sabia se isso iria suscitar, como suscitou, inveja entre seus colegas de sacerdócio. E assim, sendo ele, indiretamente, o agente, a causa eficiente da operação, foi, também, diretamente, a sua maior vítima, a principal vítima do seu endeusamento perante a multidão de romeiros. Um endeusamento que lhe custou muito caro, pois redundou, finalmente, no seu “endemoniamento” diante das autoridades diocesanas.
Comentários
Postar um comentário