Vandick Ponte - Médico Anarquista, Mestre dos Psiquiatras
Após formar-se,
em 1933, o cearense de Sobral, Dr. Vandick Ponte especializou-se em
neuropsiquiatria pela Universidade de Columbia (EUA), dedicando-se, ao retornar
à sua terra, à psiquiatria, em definitivo, como médico e professor. Desapontado
com os trabalhos do único centro de atendimento da área em Fortaleza, o Asilo
de Parangaba, segundo ele preconceituosamente denominado de “Asilo dos
Alienados”, notabilizou-se pelos esforços, ao lado do colega Dr. Jurandir
Picanço, para a criação da Casa de Saúde São Gerardo, fundada em maio de 1935.
De um ambiente outrora superlotado e com altas taxas de mortalidade, partiu-se
para o gerenciamento de uma unidade descentralizada, aberta, destacando-se pelo
pioneirismo na assistência psíquica e humanitária no Norte e Nordeste
brasileiro, ainda que de iniciativa privada, comum numa época de abandono às
causas sociais, Somente depois da reforma da Previdência, quando surgiram os
convênios, voltou-se ao público, perdurando aos dias atuais como Instituto
Vandick Ponte.
Segundo o
médico, havia na época o constrangimento em “asilar” parentes, questionamentos
aos tratamentos e à superpopulação, quando a sociedade classificava os internos
como “loucos”, diante de uma cultura de pobreza. Os psiquiatras não se
adequavam aos avanços técnicos, preocupando-se com o isolamento do doente, sem
um contato fraterno com ele. Dr. Vandick mandou abrir as portas e esquecer as
grades, colocando cada colaborador no mesmo grau de profissionalização: “No São
Gerardo, cada médico é um assistente social, cada assistente social um
terapeuta ocupacional, cada terapeuta um auxiliar de enfermagem, além da
profissão específica”. “Não é possível ver os doentes mentais apenas passíveis
de uma “cura social” utópica”.
Fábrica de Vassouras |
Com a
introdução da ludoterapia, inédita, a partir dos anos 40, a psicoterapia sofreu
uma transformação animadora, realçada até hoje pelos especialistas modernos, Havia
planos em que os doentes exercitavam culturas variadas, como danças e encenações
teatrais sempre assistidos por médicos. Pelo sistema “oper-door”, seguindo os
critérios das mudanças necessárias, constatamos os internos passeando pelos
jardins, pelas oficinas, salas de estar e recreio, ao contrário do
“aprisionamento” dos asilos, cujo modelo, que segundo o Dr.Wandick Ponte, faliu
aos cuidados do filantropismo religioso. O monopólio da religião católica não
foi capaz de absorver a tensão e nervosismo dos doentes diante de um sistema
fechado. Graças aos progressos da psiquiatria biológica, os “depósitos de
loucos” (manicômios) foram fechados ou drasticamente reduzidos e humanizados,
acabando a violência aos doentes mentais, a contenção e ociosidade.
"Uma injustiça social suicida que permite a uma elite inautêntica imitar os países ricos, explorando o seu povo e avassalando a sua cultura" (Vandick Ponte, 1986)
Se nos asilo a
marca era o tradicionalismo, a hidroterapia, sedando os pacientes, na Casa de
Saúde São Gerardo de então já se ousava com seu método de tratamento da
paralisia geral, cuja causa de origem estava ligada a sífilis cerebral, sendo
tratada pelo germe da malária. Paralelo a isso, foram introduzidos no Ceará os primeiros
aparelhos de eletrochoqueterapia e o pioneirismo na utilização de filmes como
tratamento biológico à base de insulina. “é preciso acabar com o mito da
irresponsabilidade do psicótico como já se acabou com o mito da sua violência”,
dizia o médico, que adotava a terapia cognitiva para lidar com a consciência como
forma de libertar um indivíduo de suas neuroses, controlando a sua ansiedade.
Detalhe: residência na Rua da Liberdade. Parque da Liberdade (Anos 1930), início da rua Solon Pinheiro. (Acervo Lucas) |
Em vida, Dr.
Vandick Ponte sempre pontuou pela necessidade de uma equipe profissional e
unida, principalmente em meio à carência de profissionais, que, diante da
fragilidade da Universidade do Ceará, que tardou a oferecer cursos específicos,
estudavam e se formavam no sul, quando muitos por lá ficavam. Com sua
obstinação, a casa procurou preparar colegas para trato com os pacientes,
sentido maior do seu reconhecimento como maior neuropsiquiatra do Ceará, a quem
seus alunos e colegas não dispensavam elogios. “O profissional da saúde deve
prestar seu serviço com ciência, amor e arte. O médico e o paciente, juntos na
cogestão da saúde, são ligados por uma relação de confiança de um lado e
compreensão do outro”. Ousava ao ponto de constranger uma sociedade
conservadora, patriarcal, suas ideias ultrapassavam às restrições da sua
formação acadêmica, penetrando na leveza da sensibilidade social ao chocar
preconceituosos quando defendia convictamente a liberação do uso da maconha e
afirmava que “homossexualismo não é doença nem perversão, mas parte da natureza
humana”. Para o Dr. Adelmo Aragão, “para ele, a biologia se encontrava
firmemente localizada na base etiológica das doenças mais graves em
psiquiatria. Isto naturalmente significa intervenção hospitalar, por meio de
internamentos breves e uso intensivo de medicações psiquiátricas naqueles
indivíduos que em crise muitas vezes se expõem a riscos e colocam outras
pessoas sob riscos. Neste sentido, a Casa de Saúde São Gerardo se mantém até
hoje como centro de excelência”.
Airton Monte se despede do Mestre (O Povo - Acervo Lucas) |
Cronista diário
do jornal O Povo, Dr. Airton Monte (falecido em 2012) sempre citava seu gestor
e ex-professor das cativantes aulas da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal do Ceará, como uma figura humana de invejável lucidez e humor,
tratando-o humildemente, assim como os demais médicos, como “Mestre”. Chegou na
São Gerardo ainda acadêmico plantonista, perdurando em serviço até o fim da
vida, prometendo estar ao seu lado. A separação, porém, um dia chegaria.
Durante o velório do outro, em 20 de julho de 2005, quando baixavam o corpo de
93 anos, resolveu procurar o túmulo da mãe, saindo a vagar pelo cemitério, como
citou na sua crônica, “perambulando pelo território dos mortos”. Como não a
encontrou, conformou-se parodiando Guimarães Rosa: “As mães e os grandes
homens/mulheres nunca morrem, simplesmente encantam”.
Dr. Airton
Monte, talvez na mais dolorosa de suas crônicas: “Meu Deus, como me é extremamente
difícil escrever sobre um amigo que acabou de morrer. Assalta-me uma angústia,
uma tristeza, um não sei quê de apatia afetiva que paralisa a sambada máquina
de pensar”. E na despedida: “Sempre o vi como um homemde carne e osso, um
grande homem, e os grandes homens são portadores de grandes virtudes e de
grandes feitos, e como você costumava dizer, isso faz parte da condição humana.
Até qualquer dia, velho Mestre, onde nos encontraremos, talvez, Na Terra Nunca
Mais”. O encontro veio sete anos depois.
Fez sua última
conferência em Goiânia, durante o Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Mais de
dois mil colegas o aplaudiram de pé.
O Brasileiro é
um Grande Povo:
“O Brasil é um
País grande que não é ainda um grande País porque o seu povo viveu sempre sob
um governo de origem autocrática e não tem um grande Estado, mas um Estado
grande demais, elitista, injusto e ineficaz. Um estado que tem possuído homens
ilustres, mas instituições arcaicas e demagógicas que não se compadecem com a
grandeza potencial do povo brasileiro. Povo pacífico, livre de fanatismos,
capaz de compaixão e ideias, e que malgrado a lassidão tropical, construiu
metrópoles únicas à beira do Equador e sem o refrigério da altitude. Mas que
talvez tenha concorrido para a sua maior fraqueza: a passividade ante a
contrafação dos poderes constituídos e da democracia e o Estado governado pela
troca de favores ilícitos. E assim permitiu que a sociedade brasileira fosse
progressivamente enfraquecida por cruel divisão: a maioria de rendas muito
baixas e a minoria de rendas muito altas. A primeira enfraquecida pela cultura
da pobreza (miséria em massa), a segunda pela dissipação consumista e pelo
comodismo. Uma injustiça social suicida que permite a uma elite inautêntica
imitar os países ricos, explorando o seu povo e avassalando a sua cultura” .
Antônio Vandick Andrade Ponte, 16 de agosto de 1986.
Foi um pedido
particular à sua colega. Dr. Vandick Ponte passou para a Dra. Marluce Oliveira o seguimento do seu trabalho, que era
universal. Surgiu o Instituto Vandick Ponte, ali mesmo na Casa de Saúde São
Gerardo, um dos primeiros imóveis quando ali era o Alagadiço, cercado de
vacarias e lagoas. Felizmente a fundadora fez jus à memória do saudoso
psiquiatra. Um trabalho louvável e humano. Além dos cômodos e dependências
higienicamente cuidados, encontramos a fábrica de vassouras, que surgem com as
doações de garrafas pet. A renda vai para os trabalhadores, os pacientes, que
além do serviço têm a liberdade, fruto do pioneirismo do criador.
Numa visita com
o pessoal do Instituto Tonny Ítallo, num ambiente de trabalho e paz, com o
rádio ligado nas alturas, ao som de Raul Seixas (Dr. Vandick usava músicas de
rock, como ainda Rita Lee, com letras chamativas, como terapia). Uma moça,
usando short e botas, regozijando-se numa cadeira inclinada, balançava a
cabeça, curtindo a música. Fui até ela: “Se gosta de rock somos eu e você.
Tamos nessa!” Ela não falou, mas o símbolo da resposta valeu mais: manteve o
sorriso e fez o sinal de positivo. Negativo, portanto, é não crer no amor e na felicidade.
Positivo é o abraço fraterno, o trabalho social, árduo, mas compensado pela
gentileza de um verdadeiro “bom dia”, “boa tarde”, “boa noite”.
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Pesquisas: Jornais O Povo e Diário do Nordeste
Rua Gustavo Sampaio. Dois prédios para o Instituto Dr. Vandick Ponte/Casa de Saúde São Gerardo |
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