Arraial Moura Brasil . Por Suzana de Alencar Guimarães. O Povo, 1929
O Arraial Moura Brasil - Do outro lado da vida.
O Povo, 7 de janeiro de 1929. Por Suzana de Alencar Guimarães.
Do alto dos morros do Croatá e do
moinho, debruçando-se sobre a monotonia de um mar muito verde e muito triste,
rolando pelos altos e baixos da areia suja, até chegar à orla das ondas,
estende-se a mancha escura dos casebres do Arraial Moura Brasil.
De longe ele nos apresenta tal
como uma paisagem de postal, um recanto de poesia, de doce e voluntária
renúncia á civilização. De perto, é um flagrante de miséria, de pobreza, de
infelicidade.
Quantas vezes, olhando-o da minha
janela, não deixei que os olhos se
perdessem no labirinto dos casebres circundados de coqueiros, entrelaçados de
arbustos no grande desejo de auscultar o coração da miséria que ali sofre, que
ali sonha.
Até que nos últimos dias de
novembro recebi um gentilíssimo convite do subdelegado do Arraial para fazer
uma reportagem sobre aquele recanto ignorado pelos governantes a fim de que,
pela imprensa, eu expusesse a nu todas as suas necessidades inadiáveis.
Uma tarde em que o Mucuripe, lá
na outra extremidade do horizonte, tingia-se com o reflexo de um sol poentino,
eu fui ler a mais viva página de dor que os meus olhos já posaram. Nunca vira
tanta miséria em toda a minha vida!
Em meio de milhares de casebres,
misturados com os chalés entremeados aqui e ali por jardins enfeitando a tristeza
e a desolação, fomos encontrar uma casinha de duas portas, onde está instalada
a subdelegacia.
Subdelegacia
A casa tem um aspecto
desagradável, talvez pelo fato de ser uma prisão, ela nos predispusesse mal o
espírito. Entretanto, tudo poderia ser, menos um prédio de delegacia de
polícia, mesmo quando esta conta apenas com três praças para o policiamento
daquela imensa cidade de pobreza. Um corredor, com largura de um metro,
levou-nos à porta de um quarto onde o ultimo raio de sol bailava no retângulo
de uma telha de vidro. Era ali o ultimo degrau dos infelizes moradores do
Arraial.
Mais uns passos e procuramos
acomodar a vista à escuridão do ambiente. Paramos em frente a um segundo
quarto, esse verdadeiramente tétrico. Nem um raio de luz e, a muito custo, só descobrimos através do gradil de ferro uma
silhueta que se confundia com a sombra. Era o único preso. Alguém lhe disse:
- Você vai se posto em liberdade
em homenagem à senhorinha.
E dirigiu-se ao praça que nos
acompanhava:
- Cabo, solte esse homem!
Um ruído de cadeado que se abre,
e na penumbra do corredor podemos distinguir uma fisionomia alterada pelo
álcool.
- Agradeça aqui a moça!
Mas nós já tínhamos recuados ante
a aproximação do ébrio.
- Não, não, vá em paz!
E quando o seu vulto trôpego ia a
sumir-se na porta, um soldado tentou fazer espírito:
- Vá, mas daqui a alguns
instantes não seja preciso ir busca-lo de novo.
Asfixiávamos.
- Que é isso aqui?
Era uma saleta clara, dando para
uma área de onde vinha um cheiro bom de manjericão. Em um canto, como se fora o
ultimo traço da alegria que se perdera dentro daquela tristeza, um velho
gramofone enferrujado.
Capela de Santa Terezinha
Bem no centro do arraial se
ostenta uma capelinha branca, em cujo altar sangram rosas vermelhas nas mãos de
Santa Therezinha do Menino Jesus. É ali que o sino, nas tardes quietas, esparge
preces de sons.
Por instantes, ecoando nas
alturas dos morros, a voz de Deus desperta a oração que dome nas almas dos
esquecidos, e olhando o verde do mar e o azul do céu, os lábios repetem como a
voz do sino.
Padre nosso que estás no céu
Recordamos que , nas tardes de
maio, ouvimos a voz longínqua do sino chamando os fieis para a novena, mas
alguém nos advertiu que os festejos religiosos já não são permitidos aos
habitantes daquelas circunvizinhanças. E como indagamos o motivo, apontou-nos
para o esgoto da Rede de Viação Cearense, cortando ao meio o patamar da
igrejinha, passando encostando a calçada e invadindo as casas mais próximas,
tornando inabitável a única praça do arrabalde. Dezenas de pessoas têm morrido
devido a esse pântano que se torna foco de paludismo. Se no verão conseguem
fazer ima barragem com pedaços de folhas de flandres e zinco sustentados por
trilhos inutilizados, no inverno nada conseguem. O rio de lama podre que arrasta
todo o sujo das oficinas da diretoria da RVC invade a praça e as choupanas.
É ali que passam os porcos!
É ali que brincam as crianças
cheias de anquilostomos!
Para quem apelar?
Para a direção da RVC?
Para o Departamento de Saúde
Publica?
Foram inúteis aos
abaixo-assinados dirigidos às direções passadas. Mas a Higiene desconhece
aquele outro lado da vida, onde vegeta uma população de cerca de oito mil almas
sem um posto de profilaxia.
Nenhuma escola
Em que mundo, em que se esconde a
Instrução Pública? Dolorosa interrogação. Não mantém uma só escola. Chama a
tenção o numero de crianças que seguem em romaria, crianças inconscientes e
risonhas; crianças analfabetas. Alegres de hoje e tristes amanhã. Felizes de
hoje e desgraçados amanhã. Crianças, sempre
crianças de cabelos de sol poente ou negros como a sua miséria, com os olhos
transbordantes de curiosidade para aquela desconhecida que lhes acariciava os cabelos rebeldes e
fitava-os como se quisesse descobrir dentro das suas pupilas os caminhos
solitários que o destino lhes traçou.
Taperas!
À proporção que andávamos, mais
nos aguçava o desejo de conhecer os limites daquela pobreza. Casebres cobertos
de palha, de folhas de zinco, de retalhos de estopa assomavam à nossa vista,
misturados pelos carramanchões de jasmins, na vizinhança de entulhos, onde se
rojavam cães cobertos de rabugem e crianças cobertas de sujo.
Ao balanço da rede, nas salas
escuras, mães acalentavam os filhinhos que não tinham tido naquele sai uma
fatia de pão:
- “Dorme, dorme meu filhinho, que
eu tenho o que fazer...”
O Pão nosso de casa dia
É muito difícil dizer como vivem
os moradores do Arraial Moura Brasil . Quase todos os homens são operários da
RVC, e enquanto ganham o pão com o suor do seu rosto, junto ao trepidar das
caldeiras e ao apito das locomotivas, as mulheres vão tecendo , à sombra das
árvores, as rendas de bilros para alimentar a vaidade daquelas pata quem o
destino teve um bom destino.
A prima dos Távora
Ao lado da igreja uma casa grande,
pintada de verde, dá uma impressão ao visitante de abastança e fidalguia. É o
lar de uma prima do grande Juarez. Ela nos fala com orgulho dos nomes dos heróis
que estão ligados à nossa Pátria.
Chega quase a comover-se ao falar
da morte de Joaquim Távora, mas, mesmo dentro da sua dor há na sua voz uma
energia e um patriotismo que não disfarça .
Falando da causa revolucionária,
tem gestos de franqueza e de coragem que seriam admiráveis em uma mulher se
esta não pertencesse à velha e gloriosa estirpe dos Távora.
Serenatas e candomblés
Por aquelas encosta do morro, nas
noites enluaradas, gemem as violas ao som das vozes dos trovadores. mas dentro
das noites escuras ouve-se, também, o soar tétrico dos maracás e o rumor
apavorante dos negros nos saracoteios do candomblé.
Subimos
La no alto, bem ao alto, em
frente ao mar, a alma sedenta de panoramas inéditos descobriu o Arraial Moura
Brasil, dentro da sua miséria, rodeado de palmeiras , ornado pelas bandeiras
multicores dos molambos estendidos ao vento, coberto por um céu azul, azul, azul...
Um turbilhão de sentimentos
desencontrados atirou-nos para teias da nossa eterna insatisfação ao nos
deparar com a miséria que sonha na escuridão do seu catre, tão pertinho dos
olhos governamentais, junto ao mar, distante do céu.
Era ali o “arraial que Deus
esqueceu”. Sem pão, sem conforto, sem higiene, sem polícia, sem escola, o
Arraial Moura Brasil é bem o outro lado da vida.
Descemos
Era quase noite quando descemos o
vasto arraial dos morros. Havia, ainda, um resto de luz dançando nos ciprestes
do cemitério São João Batista. Tínhamos saído de dentro da miséria para
defronte da morte...Nenhuma sensação se produzira no nosso espírito. Nenhuma
diferença encontramos entre a morte em vida e a morte depois da vida.
Excelente blog. Li muito sobre a parte musical, tendo em vista que sou fundador do Conjunto Musical Big Brasa, de Fortaleza, e trabalhei nas televisões TV Ceará Canal 2 e também na TV Educativa do Ceará. Sobre música escrevi três livros, em especial dois deles sobre o Conjunto Big Brasa. Caso haja interesse favor entrar em contato pelo meu Facebook.
ResponderExcluirhttps://www.facebook.com/jrsilvaneto/
Desculpa a demora. Claro que lhe conheço. Grato e parabéns pela sua colaboração .
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