OS GRANDES FEITOS DA ABOLIÇÃO NO CEARÁ - ENTREVISTA COM O ABOLICIONISTA ISAAC AMARAL
OS GRANDES FEITOS DA ABOLIÇÃO, NO CEARÁ
O Nordeste 09 a 20
de janeiro de 1933 (Cinquentenário da Libertação dos Escravos)
Prodomos do movimento libertador - Dissidência - Os da
LIBERTADORA que restam - Como se originou a famosa Sociedade - O fechamento do
porto, Dragão do mar e a greve.
O Ceará está na fase histórica da comemoração da abolição
dos escravos em seu território, fato que
lhe granjeou eterna glória por ter antecedido cinco anos a Lei Áurea.
Quando a augusta Princesa D. Isabel assinou a Lei em 13 de
maio, já a Província do Ceará estava livre!
Acarape, o primeiro município redentor do Império, celebrou
no dia primeiro (de janeiro de 1883) a festa cinquentenária da abolição, e São
Francisco da Uruburetama (Itapagé), o segundo município, fará no dia dois
próximo.
É, portanto, um período histórico de excepcional relevo o
que se recorda. E, como a história da abolição ainda não foi escrita, não deixa
de despertar justo interesse a palavra autorizada de quem, àquele tempo
heroico, tomou parte direta no grande no grande movimento emancipacionista.
Nesse caso está o coronel Isaac Amaral, único sobrevivente
da comissão que foi com José do Patrocínio a São Francisco e a alma do
acontecimento em Quixadá, onde ficou grande a comissão da “Libertadora” e
seguiu para o Icó.
Procuramo-lo, pois, sobre o palpitante assunto, e o velho
abolicionista designou-se de atender-nos com a melhor boa-vontade, mantendo
conosco interessante palestra atinente ao caso na sua aprazível residência no
São Gerardo.
Isaac Amaral:
“O de que trata o nobre abolicionista é árido e complexo,
nada mais representando uma crônica
sobre fatos ocorridos há meio século. Além disso, posso me valer apenas dos
versos da memória, e esta já é fraca diante de tão distantes sucessos.
Ademais, os fatos mais empolgantes daquela campanha já não
interessam à presente geração, que nenhum contato teve com eles, por livro ou
pela imprensa, para compreender o poder moral da cruzada redentora”.
A memória, portanto, dos feitos de uma geração de abnegados
foi esquecida como são todos eles confirmados.
OS ÚLTIMOS ABENCERRAGENS
- Quantos restam daquele tempo, coronel?
- Três, meu amigo, apenas três: Padre João Augusto da Frota,
Alfredo Salgado e o humilde entrevistado. Da velha guarda que desfraldou a
bandeira da Libertadora Cearense que tornou o Ceará a Metrópole do
Abolicionismo, já desapareceram do cenário de vida João Cordeiro, José Amaral,
Antônio Bezerra, Antônio Cruz Saldanha, Antônio Martins, José Theodorico de
Castro, D. Frederico Borges, Dr. Pedro Borges, João Jatahy, Almino Álvaro
Afonso, João e José Albano; José de Barros, JW Aires, Francisco do Nascimento,
conhecido como “Dragão do Mar”; José Telles Marrocos e Cândido Alves Maia.
E depois de uma pausa:
- Também já não existem os abolicionistas Rodolpho
Theophilo, Felipe Sampaio, Justiniano de
Serpa e Martinho Rodrigues, que eram grandes beneméritos paladinos da cruzada.
ORIGEM DA LIBERTADORA
- Como se originou esse núcleo que fez surgir a Libertadora?
- Assim: Logo depois da grande seca (1877 - 79), um grupo de
pessoas de elite, do comércio, com modestos capitais , mas fitos altruísticos,
fundou uma sociedade mercantil , semelhante à cooperativa, destinando parte dos
seus lucros à alforria de escravos. Denominava-se Perseverança e Porvir. Sendo
moços, porém, seus associados, desejando ampliar o campo de propaganda contra o
elemento servil, tomaram a iniciativa de formar outra grande sociedade com
elementos de todas as classes para a cruzada redentora, e, assim, a 8 de
dezembro de 1880, foi fundada a Libertadora Cearense, com o comparecimento de
enorme quantidade de sócios, porque a ideia foi recebida com aplausos gerais
pelo povo.
Porém, logo no nascedouro, houve uma cisão, formando-se dois
grupos de sócios: um que queria trabalhar à sombra da Lei, com estatutos
aprovados; outros, capitaneados pelos líderes da Perseverança, mais exaltados, que
não aceitavam código, entendendo que deveriam agir contra a Lei que cativava o
homem, e não a favor da Lei do senhor contra o escravizado.
Foi uma sessão agitadíssima, de grande utilidade, todavia,
para o movimento, pois trazia mais coesão entre os defensores de ambos os
lados.
OS DISSIDENTES
Do lado da Libertadora Cearense ficamos coma maioria do
povo, e do lado dos legalistas, tendo à frente o Dr. Guilherme Studart (Barão
de Studart), Júlio Cesar da Fonseca Filho, João Lopes Ferreira Filho, Antônio
Miranda e muitos outros filiados ficou o apoio oficial, grande parte do funcionalismo
público e proprietários, que não queriam se aventurar em lutas subversivas,
atentando contra a Constituição do Império. Mas todos tabalharam pela causa,
faça-se justiça.
FECHAMENTO DO PORTO AOS ESCRAVAGISTAS
- Um fato interessante. Como se deu o fechamento do porto de
Fortaleza ao tráfico de escravos?
- Vamos por partes. Logo após a seca de 1877-79, houve falta
de braços para a lavoura cafeeira no sul e vieram procura-los no Ceará. Havia
razão. É que muitos proprietários do interior, empobrecidos ou endividados, só
tinham como valor, para cobrir os déficits, a única mercadoria valorizada
ainda, que era o mísero escravo.
Daí nasceu uma corrente extraordinária de venda,
estabelecendo-se um tráfego tão intenso quase como nos tempos africanos. Dentro
da Lei, é óbvio, nada se poderia conseguir para pôr termo a tão aviltante
comercio de carne humana. Só com astúcia e violência seria possível o golpe de
morte desse tráfico.
E, de fato, na surdina, o meu irmão José do Amaral, com
Antônio Cruz Saldanha, Antônio Martins, Pedro Arthur de Vasconcelos e outros
dos nossos consórcios, durante a noite de 26 para 27 de janeiro de 1881, em
magistral conspiração, puderam converter a alma dos jangadeiros, fazendo com
estes se recusassem a conduzirem os
escravos vendidos para o sul. Foi trabalho árduo, porque o embarque de cativos
era o mais rendoso para os seus condutores, e só podia ser feito por meio de
jangadas por ainda não haver botes ou saveiros.
O PRIMEIRO HERÓI NÃO FOI DRAGÃO DO MAR
- Daí a fama de Nascimento, sem dúvida...
E o coronel Isaac, como refletindo:
- É este um ponto delicado que devo explicar ao leitor. Nos
memoráveis dias das greves dos jangadeiros, 27, 30 e 31 de janeiro de 1881,
Francisco do Nascimento, depois cognominado Dragão do Mar, nenhuma parte tomou
no trancamento do porto de Fortaleza, e sim Antônio José Napoleão, um liberto,
chefe dos capatazias da Casa Boris Frères e pessoa de grande prestígio entre a
classe marítima praieira, como concurso de Pedro Arthur de Vasconcelos, empregado
da Casa Singlehurst, e também prestigioso e influente entre os trabalhadores do
mar, que prestou o primeiro maior serviço irmão José Amaral e aos seus poucos
companheiros, conseguindo o resultado colimado, a greve, o que deu um colossal
realce à cruzada abolicionista, surpreendendo todo o País.
Nesse ponto interrompemos.
- Já ouvimos alguém dizer que a adesão dos jangadeiros
custou muito dinheiro...
Ao que o coronel, com veemência:
- Não é verdade, os jangadeiros não se venderam. Pelo
contrário, recusaram somas avultadas dos embarcadores negreiros, que chegaram a
oferecer 200$ pelo embarque em uma jangada, equivalente, hoje, a cerca de uma
dezena de contos, se houvessem embarcado mais de duzentos escravos, já de
passagens pagas, e que ficaram em terra por falta de transporte para bordo.
Agora, o que é certo é que aqueles homens precisavam ser recompensados equitativamente, e para isso o
meu irmão José do Amaral dispendeu bastante dinheiro. João Cordeiro deu 1:000$
(um conto de reis), e, em menores cotas, entraram no rateio outros
abolicionistas. Lembro que também entrei com a minha modesta cota de
indenização, o que era dever sagrado. Os abnegados e valorosos jangadeiros,
principais expoentes da primeira vitória da Libertadora, precisavam ter mantida
a sua subsistência.
AINDA SERVIÇOS DOS JANGADEIROS
- Por obséquio, coronel: os jangadeiros depois continuaram
essa vitória, de prestar serviços aos libertadores?
- E valiosíssimo! Encorajados pelo entusiasmo do sucesso que
lhes deu fama, foram os melhores agentes para a vigilância nos embarques e,
melhormente, nos desembarques dos escravos que passavam em trânsito para o
Nordeste ou para o Sul, não escapando sequer os fâmulos de altas figuras, que
viam os seus escravos arrebatados de bordo, como sucedeu com uma caboclinha de
Marcelino Nunes Gonçalves, senador pelo Maranhão, caso ruidoso naquela época.
Além disso, vinham do Recife e de outros portos em paquetes e barcaças,
escravos remetidos pelos abolicionistas das províncias limítrofes.
- E as autoridades do porto e de bordo não intervinham na
defesa da propriedade escrava?
- Nunca intervieram, não sei por que motivo. Existia certa
simpatia, convertida em solidariedade, que permitia os mais aberrantes
disparates em matéria de desrespeito à lei quando se tratava de escravos, e os
jangadeiros do Ceará, e os jangadeiros do Ceará gozavam de uma tolerância sem
precedente. Daí nasceu o poderoso auxílio aos escravos foragidos, que tinham
até passagem gratuita para o Ceará.
- E pelas fronteiras?
- As levas eram, também, vultosas. Aqui, a Libertadora
distribuía os cativos redimidos pela fuga, nos municípios, baldeando-se da
própria Província, de uma para outra comuna, o que transformava os planos dos
escravocratas e os desolavam.
INAÇÃO DO GOVERNO IMPERIAL
- Mas o governo central tomou, certamente, medidas severas
contra esses atos subversivos.
- Francamente, não faltaram esforços dos governos central e
provincial para refrear o movimento, que era considerado no Rio como anarquia e
desordem. O próprio Imperador falou sobre o caso ao General Tibúrcio, que o
dissuadiu das “falsas informações”...Tibúrcio era nosso.
Todas as medidas, porém, eram burladas porque, com golpes de
audácia, e com apoio de todas as classes sociais, com o auxílio do clero - que
teve papel saliente, com a contemporização da magistratura, a simpatia dos
militares e, sobretudo, com a adesão da massa popular e do comércio, nenhum
efeito produziam os processos de reação promovidos pelas autoridades, o que
causou sérios desgostos a certos presidentes da Província, que se retiraram do
Ceará cabisbaixos e desmoralizados. Houve um até, escravagista, que ficou de
tal forma antipatizado que não encontrava quem lhes lavasse a roupa...
O PAPEL DA IMPRENSA
- Os jornais...
O coronel Amaral falou com ênfase:
- Nunca, talvez no Brasil, a imprensa dignificou tanto a sua
nobre missão como o movimento abolicionista do Ceará. “O Libertador”, órgão da
campanha, era o líder independente, que não tinha limites em definir o seu
programa e fazê-lo cumprir à risca.
A “Constituição”, órgão do Partido Conservador, de Barão de
Ibiapaba, era quase um aliado, pelos elos estreitos que faziam os seus
redatores libertadores vermelhos, como os Drs. Frederico Borges, Justiniano de
Serpa, Almino Afonso e Martinho Rodrigues.
Seu redator-chefe, Paulino Nogueira, tinha o espírito concentrado no
processo da cruzada redencionista.
O “Pedro II”, conservador, de Barão de Aquiraz, que tinha na
redação Luiz de Miranda, Torres Portugal e outras figuras de destaques.
Havia, como excepcional, apenas o “Cearense”, órgão liberal,
das famílias Paula Pessoa, Andrade, tendo à frente Rodrigues Junior. Fazia
oposição sistemática à campanha abolicionista do Ceará. A situação política no
sul estava nas mãos dos escravagistas liberais. No entanto, justiça confessar:
todos os membros dessas famílias não participaram de atos que pudessem manchar
a sua reputação, educados como eram nos rígidos princípios da moral e das
práticas humanitárias. Da oposição daquele jornal obtivemos ótimos frutos, pelo
estímulo que nos alertava, com acicates que não deixam os corcéis arrefecer na
marcha.
O CLERO E ATUAÇÃO
- A sua atuação foi inestimável. Todo ele se portou com uma
dignidade extraordinária, e eu tenho o máximo prazer em reavivar essa página do
civismo. O grande antistite, D. Joaquim, era um santo e um patriota a toda
prova. Prestou à cruzada redentora os mais assinalados serviços, conquistando a
admiração de quantos se batiam pelo grande ideal. Esteve conosco o venerando
bispo numa festa libertadora em Pacatuba. A sua presença entusiasmava e dava
força à campanha. O Ceará deve-lhe, nesse ponto, imorredoira gratidão. Declino
o nome do eminente prelado com toda a veneração.
ARTISTAS, ESTUDANTES, CAIXEIROS E LITERATOS
- Um apoio espontâneo apreciável que teve o abolicionismo
foi dos artistas. Sempre eram preciosa contribuição ao objetivo libertador,
sobressaindo dessa classe João Carlos Jatahy, marceneiro-mestre, elemento dos
mais expressivos da luta cívica.
Não posso esquecer também o papel brilhante que
desempenharam os estudantes e os caixeiros, em muitos casos, os fulanos
“farejadores” dos esconderijos dos inimigos.
Havia ainda um exército de anônimos de onde saiam tipos
característicos, de alto proveito para a campanha. Eram os poetas, trovadores e
os pregoeiros que pululavam em todos os recantos da capital e do interior.
Havia tribunos populares de todos os matizes, dos quais ainda sobrevive um, o
velho Ponciano, da Rua da Misericórdia, orador acatado nos conciliábulos,
reuniões noturnas e dias de festas.
Dos estudantes, sobrevive o desembargador Álvaro de Alencar,
que fez muito, com arroubos e entusiasmo. E dos literatos, suponho que apenas
Papi Junior. U poeta de nome apreciado pelo povo era Barbosa de Freitas. Oliveira
Paiva teve igualmente atuação na intelectualidade.
O NÚCLEO FEMININO
- Certo. Há nomes femininos na campanha, não?
- É bem de ver que sim. Esse elemento ponderável não podia
faltar no cenário onde se representava o mais empolgante drama social do Brasil.
Pena que meio século seja um tempo longo demais para
recordar em todos os seus pormenores o feito heroico, mostrando, revividos, o
patriotismo das heroínas cearenses. Daria um poema épico de edificadora comoção
altruística. Só uma pena amestrada poderia glorificar tantos episódios de
abnegação, caridade cristã e civismo das senhoras que realizavam um feminismo
dignificante.
Muitas damas ilustres daquela época poder-se-iam denominar
Cornélias - mães dos Gracchos e Machabeus.
Em Fortaleza, existia a Sociedade Libertadora das Senhoras,
cujas líderes eram D. Maria Thomazia, sua presidente; Carolina Cordeiro, vice;
Eugênia Amaral, 2° vice; Elvira Pinho, secretária; as Theophilos e muitas
outras figuras de destaque na nossa elite social. Suponho que, além de D.
Elvira Pinho e Dondon Sonto pouquíssimas restam. No interior da Província
existiam também filiais dessa benemérita agremiação.
TENTATIVA DA ABERTURA DO PORTO
- E o governo não pretendeu reabrir o porto de Fortaleza ao
tráfico de escravos?
- Foi o caso, aliás, mais sério da campanha, a batalha
decisiva - a Saratoga cearense, ou melhor, brasileira, que abriu brechas em
todos os baluartes da resistência escravagista para forçar caminho aos
paladinos do abolicionismo triunfante.
Não se deverá também esclarecer que, em grande parte, o 30
de agosto (1881), dia em que o governo pretendia reabrir o porto ao embarque
dos escravos, foi o rastilho de pólvora que produziu mais tarde, a explosão da
segunda questão militar, que derrubou o trono , por conseguinte trouxe o
advento da República em 15 de novembro de 1889.
Explico, em resumo, esse caso que talvez seja uma surpresa
para muitos. Até 30 de agosto de 1833 o porto de Fortaleza ficou trancado ao
embarque de escravos, e bem assim os demais portos da Província. O que, porém,
mais exaltava o ódio dos escravagistas do Império era o abrigo ostensivo que
tinham os escravos foragidos no Ceará, então o Canadá brasileiro. Isso vinha
desorganizando a disciplina das senzalas, portanto, ameaçando a anarquia à
instituição de escravatura de além Cabo Frio. Espontaneamente fugidos ou
patrocinados por indivíduos ou associações, demandavam para o Ceará, por terra
ou por mar, milhares de infelizes que arrostavam todos os perigos para se
libertar.
Contra esse abrigo, e desrespeito à todas as leis do País, clamavam
os plutocratas do sul que se se julgavam prejudicados. Não obstante à
intervenção benevolente que sempre revelou o Imperador para não se empregar
meios violentos contra as “desordens” do Ceará, como eram denominados pelos escravagistas,
chegou a um ponto tal a imposição do prestígio dos negreiros perante o governo
imperial, que ele teve, de fato, que tomar as medidas para implantar o
cumprimento da lei e restaurar o prestígio das autoridades que representavam o
governo, sempre desmoralizado em suas tentativas de reação contra os planos dos
abolicionistas.
Para cumprir essa missão, foi nomeado Presidente do Ceará o
senador baiano Leão Velloso, figura de alto relevo na política do Império, como
estadista e de valor incontestável, de energia capaz de solucionar o caso.
Aqui chegando, aquela autoridade, armada de todos os meios
para fazer respeitado o governo que representava, não perdeu um instante em
encenar o alto valor da sua técnica. Um pretexto fútil surgiu, então para romper
o fogo contra os seus adversários, e esse pretexto prendia-se ao embarque ao
embarque de duas escravas que uma família (Camerino)aqui adquirira para o Pará.
A Libertadora Cearense, no entanto, fiel ao seu programa,
envidou os meios suaves de impedir aquele embarque. Suas propostas, porém, não
foram aceitas porque já havia o apelo do governo da Província para livrar a
família de quaisquer vexames na praia. Disso resultou que somente cabia à
Libertadora roubar as escravas antes de serem embarcadas. Essa iniciativa,
porem, falhou porque os donos das duas vítimas as conservavam sempre ocultas,
de tal sorte que nenhuma tentativa teve êxito. A melhor e mais cômoda hipótese
seia a de fazer a alforria judicialmente, isso já assentado pela maioria dos
sócios da Libertadora. Entretanto, os homens da situação do governo, certos do
poderio do senador Leão Velloso, desejando pôr em cheque o prestígio dos
libertadores, tornaram-se arrogantes e desdenhosos para não admitir a harmonia
do caso em apreço - o que representava um ultimatum do governo ao povo. Era um
desafio, portanto, aos brios da Libertadora Cearense, e quiçá da maioria dos
cearenses que já estavam identificados com as doutrinas dessa associação
revolucionária.
Contava, assim, o presidente da Província com a força do
Exército, da polícia, da Guarda Cívica, e de um esquadrão de cavalaria, quase
dois mil soldados armados contra milhares de cidadãos desarmados. A luta ia se
ferir, portanto, empregando o governo as suas armas para pôr em prática as suas
ordens.
No dia 30, logo pela manhã, começaram a formar os batalhões
destendidos em linhas desde o Trapiche Vermelho até a Escola de Aprendizes
Marinheiros (no local, hoje, o prédio da Secretaria da Fazenda).
Porém, todos os homens do mar, unidos, em um só pensamento:
o da greve pacífica. Solidários com a Libertadora aguardavam calmos o desfecho
do embarque prometido pelo governo, que somente poderia contar com o bote da
polícia marítima, mas...sem tripulantes.
Impacientes, as forças armadas expostas ao sol, o povo e os
jangadeiros viam passar as horas e nada e nada de aparecer o pretexto da causa
daquele aparato bélico, as duas escravas. De bordo do paquete Espírito Santo,
onde já se encontravam os seus donos agasalhados, temendo qualquer surpresa
desagradável em terra, notava-se a ânsia pela partida, transmitida pela sirene
do vapor, que já tinhas malas do correio e o despacho para safar-se. O efeito
não podia, portanto, demorar mais. A maior surpresa que já registrou no rol dos
raptos das Sabinas de Roma até aquele dia célebre.
Conto o caso - desejando o dono das escravas fazer sigilo
sobre a ida destas para a praia temendo qualquer incidente, resolveram fazer o
trajeto dentro de uma carruagem, tomando todas as cautelas para evitar a de D.
Luiz XVI em sua fuga de Paris, às vistas de uma população irada e sequiosa de
escândalo para denunciar.
Com espanto geral da multidão, ao chegar esse carro em
frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, João Carlos Jathay e Cândido Maia,
reconhecendo a astúcia preparada, avançaram para frente do veículo, freando a
marcha dos cavalos e, sem perda de tempo, arrebatando as rédeas das mãos do
boleeiro, fizeram volver o carro em grande disparada para dento da cidade. Ali,
em bairro seguro, deixaram as duas presas da sua audácia.
Sabido o caso, o Espírito Santo levantou ferros, a tropa,
aos poucos voltou aos quartéis e o povo, em vozeria infernal, entoou as mais
vibrantes “hurrars” à nova conquista, com apodos de vaias a Leão Velloso e ao
chefe da polícia, Torquato Mendes Vianna, que ali representava o papel de
general das forças do governo.
A VINGANÇA DO GOVERNO
- Mas o governo não deve ter ficado de braços cruzados.
Nenhum efeito resultou desse tremendo fracasso?
- O efeito foi acima de qualquer expectativa, até mesmo para
os libertadores, que nunca supuseram ganhar uma vitória surpreendente com tão
pouco dispêndio de energias. No entanto, nos arraiais do governo o desespero de
causa levou o presidente Leão Velloso a traduzir sua decepção com medidas
extremas de perseguição a todos os abolicionistas que tinham emprego de
confiança e com vencimentos. Foram demitidos o promotor público da capital, Dr.
Frederico Borges; o administrado da Recebedoria, Antônio Bezerra; e o
prático-mor da barra, Francisco do Nascimento (Dragão do Mar), que já era de
alma e coração abolicionista decidido. Eram os três empregados públicos da
Libertadora.
ATÉ O EXÉRCITO PAGOU CARO
- E ficou nesse efeito das iras presidenciais?
- Qual nada, meu amigo. Foram demitidos mais quatro
intendentes policiais da Guarda Cívica, sendo diversos outros oficiais e
empregados removidos. Mais pesada foi a punição a todo o 11° Batalhão de
Infantaria do Exército, cujo comandante, coronel Lima e Silva, e todos os
oficiais tidos como simpáticos e coniventes com o movimento foram transferidos
para a Província do Pará, então considerada um degredo.
A ATITUDE DOS MILITARES
- Houve, realmente, algum entendimento entre esse coronel
com os libertadores que desse causa à perseguição oficial?
- Diretamente não. O que havia era muita simpatia pela
causa. Quase todos estavam sempre em contato com os libertadores, frequentando
os clubes e o Libertador, que era o ponto obrigatório dos que vinham ao Ceará,
tendo sido até desses oficiais nomeados para comissões manumíssoras, como o
capitão Carlos de Alencar, que foi ao Icó em propaganda ostensiva. Tudo isso
era apreciado pelos adversários como subversão, resultando sempre em remoção
dessa para outras guarnições. Mas não era de grande proveito para nós porque os
removidos e transferidos se constituíam, lá fora, em evangelizadores pagos pelo
governo.
No caso do coronel Lima e Silva, figura de relevo do
exército, sobrinho de Duque de Caxias, deu-se apenas isso: esse brioso
oficial superior declarou ao presidente
Leão Velloso que estava disposto a cumprir, dentro dos deveres militares, as
ordens emanadas dos seus superiores hierárquicos. De forma alguma, porém,
empregaria os seus comandados na pega de escravos, nem os faria perturbar uma
greve desde que fosse pacífica.
De fato, lá esteve na praia o garboso batalhão em forma de
parada.
Dessa repulsa patriótica nasceu a desconfiança de Leão
Velloso, que era também comandante das Armas. E o coronel foi transferido para
o degredo.
- Fundavam-se, nesse caso, as suspeitas do presidente...
- Absolutamente, pois o que se deu foram ligeiros
entendimentos entre José do Amaral, João
Cordeiro e Dr. Frederico Borges com o coronel Lima e Silva, expondo-lhe esses
abolicionistas os receios de uma luta armada, provocada pelo presidente, que
deseja impor a força bruta o embarque das duas escravas a fim de abrir o porto
de Fortaleza ao tráfego escravagista, paralisado há dois anos.
GERME DA QUESTÂO MILITAR
- O coronel (Isaac Amaral) falou na questão militar. Como
sabe que dali nasceu o germe desse novo acontecimento?
- Para dedução dos fatos, e pela confirmação dos oficiais,
não sendo mais do que uma consequência lógica do procedimento que teve o
coronel Sena Madureira, recusando-se a ir à Serra do Cubatão dar caça aos
escravos fugidos.
O embarque acintoso do 11° Batalhão levantou nos militares
espírito mais franco pela causa libertadora, até então ainda velado pelo dever
de farda.
Lembro-lhe, meu caro, um caso edificante. Quando chegou a Belém
o Batalhão, foi recebido pelos cearenses com festas e banquete, e laureado como
vítima dos escravagistas. Isso soou bem no seio da classe, embora os efeitos da
primeira questão militar tivesse deixado o governo arranhado na frase do Barão
de Cotegibe.
IMPERATIVOS DA ORDEM E DA DISCIPLINA DA LIBERTADORA
- Depois de tudo isso seria interessante se, por ventura,
não houve motins, comoções sociais...Pode dize-nos?
- Nunca uma campanha de tais proporções foi tão bafejada
pelo espírito de ordem. Posso afirmar ao jovem jornalista que a providência
divina, digamos mesmo ao tempo dos anjos protetores das causas nobres escudaram
as nossas vidas e iluminaram os nossos espíritos para a lutamos sem tréguas e
afrontamos todos os perigos que o campo de ação oferecia, tratando de derrubar
uma instituição deveras aviltante, mas, em todo o caso, representando um
direito de propriedade. Fomos sempre felizes, tornando-se, pela astúcia e pela
audácia, mais fortes e disciplinados, quando os adversários, isolados, não nos
podiam enfrentar. Eles tinham medo do materialmente mais forte, e isso era a
maior arma para ataca-los.
QUILOMBOS POR TODA A PARTE
Depois de uma pausa, continuou o coronel saac Amaral:
- Parece até exagero dizer-lhe que, com a multidão de
escravos em movimento constante entre províncias e municípios, em instalações e
acampamentos improvisados, como verdadeiros quilombos, a Libertadora pudesse
manter em modelar disciplina naquela massa formidável de párias. Creia, porém,
que esse milagre de mante milhares de homens libertos de fato, cujos números
apavoravam o governo, a Libertadora Cearense, sem dinheiro, realizou.
- Realmente, é original...
- Explico-lhe. Os escravos, na maioria homens robustos,
fortes, eram obrigados a trabalhar onde se viam abrigados, e o trabalho nunca
lhes faltou, mesmo no revezamento de um para outro município. Fabricavam
tijolos, telhas, cortavam lenhas, plantavam roçados, sítios e chácaras,
serviços de frete para o transporte nas capatazias da praia, não faltando
trabalho nas casas de família, onde se empegavam como criados, cozinheiros,
serviços de toda a ordem.
Os escravos eram todos humildes e bem comportados,
trabalhadores, destoando-se (aqui para nós) dos retirantes das secas, ciados
nos sertões, sem treino para os labores da vida operária.
As suas aptidões resolviam o assunto do emprego, que era,
como não há de negar, importante.
Um dia recebera eu a visita de quatro manumissados vindos de
Teresina, Piauí. Procuravam lugar para trabalhar, o que me foi facílimo
conseguir. Todos entendiam de cozinha, de serviços domésticos, de lavagem,
engomagem e eram peritos doces e no
fabrico de queijos.
UM ESCRAVO EDUCADO EM PARIS
- Havia casos
curiosos de escravos que procuravam o Ceará na ânsia da liberdade. Vou lhe
contar um, bastante original, pouco conhecido.
Numa turma vinda de São Paulo, aportaram em Fortaleza vários
escravos de bom aspeto e bem trajados. Deles, havia um pardo, jovem ainda,
elegante, de maneiras afáveis, vestindo-se com apurado gosto. Era cozinheiro e
pertencia à rica família Queiroz, daquela província sulista, e fora educado em
Paris, onde fez um curso de culinária sob direção de abalizado mestre na arte.
Esse pardo esteve em casa da minha mãe, no Bemfica, revelando o talento de um
verdadeiro Vatel. O meio aqui era, porém, pequeno para a exibição de semelhante
artista. Apesar disso, dizia-se feliz no Ceará, pois era um homem livre.
Certo dia, deu-se uma festa numa chácara no Bemfica, e a
todas as famílias causou espanto a arte culinária do pardo, que exibiu o de
mais variado e saboroso se poderia imaginar entre nós. Iguarias jamais experimentadas em Fortaleza.
Naquela ocasião, às sós com ele, soube-lhe a história.
Narrou-a em bom francês, expandindo-se largamente. Nascera escravo e desde
criança foi bem cuidado, recebendo instrução regular. Como a sua mãe era
cozinheira da opulenta família, gozava de bastante regalia dos seus amos, e daí
o capricho do senhor de fazer dele bom mestre de cozinha, preparando-se desde
logo na cozinha da fazenda e depois na capital, onde se instruiu. Já crescido e
com todos os conhecimentos da sua arte no Brasil, teimou o seu dono em leva-lo
para a Cidade da Luz, entregando-o ali aos cuidados de famoso cozinheiro, um
suíço de grande renome e maior ordenado, considerado verdadeiro rei da cuca.
Confessou-me, então pesaroso:
- Muito aprendi em Paris, e se fosse dono da minha pessoa
estaria nos Estados Unidos ganhando mais que um senador no Brasil. Voltei para
o meu País e fui um instrumento decorativo do palácio e da mesa dos Queiroz,
apresentando iguarias em banquetes que deslumbravam até os Penteado, os
Pacheco, os Prado e outros milionários que me felicitavam, dando-me boas
gorjetas e joias. Tudo aquilo me lisonjeava a vaidade, além da bondade dos meus
amos, que me cercavam de tudo que um rapaz pode desejar.
No entanto, o que a muitos parecia uma vida invejável, para
mim era um inferno. O senhor bem pode avaliar quanto vale a liberdade. No Ceará
sou livre. Era o que desejava e o meu braço está pronto para a defesa do
abolicionismo. Sou moço, forte e no meu coração se aninha o ódio contra os
opressores da minha raça.
Ao que lhe retruquei, dando-lhe razão, mas dispensando
qualquer atitude que não fosse pacífica, porque a jornada da liberdade não
visava desamar sangue irmão.
O TRABALHO CONTÍNUO DE DESVALORIZAÇÃO DA PROPRIEDADE ESCRAVA
- 35 MIL ESCRAVIZADOS
- Por que dá tanto apreço à vitória de 30 de agosto quando
ainda, oficialmente, os registros acusavam 35 mil escravos?
- O jovem jornalista não se deve impressionar com algarismos
nem com registros, muito menos com o aparato oficial do nosso país, quando se
trata de problemas sociais, que somente o momento psicológico da oportunidade
resolve, com surpresa, o que sempre sucedeu. Depois do 30 de agosto, todas as
vistas do Brasil se voltaram para o Ceará, como sugestionadas pelo prazer de avançar a propaganda
abolicionista, que no Rio ainda se fazia com teorias acadêmicas. Outros, porém,
temiam esse avanço pelo pavor que a cruzada imprimia aos interesses da
plutocracia cafeeira, que era a coluna mestra da economia nacional.
Fossem mais arraigados os nossos costumes políticos e
econômicos, como nos Estados Unidos, ter-se-ia aberto uma luta, talvez
sangrenta, como a Guerra da Secessão americana, que roubou a vida ao grande
Lincoln.
Com a desmoralização das medidas tomadas pelo governo
imperial, julgou este que já tinha dado a maior das suas energias para
contentar a corrente escravagista, e disso valeu o Ceará tempo suficiente para
intensificar a campanha.
Assim se fez. O trabalho contínuo de desvalorização de
propriedade escrava a se manifestava a cada dia, repercutindo em todas as
províncias. A Libertadora tinha preparado o campo para desenvolver os seus
planos: libertação sistemática dos municípios, uns após outros, jogando com os
elementos da lei do menor esforço para colimar esse fim.
O PRIMEIRO MUNICÍPIO LIVRE - A RAZÃO DE SER DA PRIMAZIA DO ACARAPE
- Já que falou em municípios, poder-nos-ia dizer a razão
pela qual Acarape foi escolhido para ser o primeiro a se libertar?
- Por três motivos. O primeiro pela proximidade da capital.
O segundo, pela facilidade de transporte, e o terceiro, por ser o município que
contava com menor número de escravos.
Estudados esses elementos, ficou a ideia amadurecida.
Tratou, então, em sessão, para solucionar o caso. Uns opinavam que deveria ser
sem ônus, embora empregando-se os meios indiretos, como a fuga de escravos. A
maioria, entretanto, com mais prudência, resolveu fazer a remissão com o apoio
generoso do povo acarapense, tendo-se feito prévio apelo, tendo o melhor
acolhimento das principais famílias daquele futuroso torrão. Acentuou-se,
todavia, que, como auxílio aos proprietários pobres, a Libertadora se
encarregaria de angariar os meios pecuniários para indenizá-los. Para esse fim,
como era de costume, abriu-se uma subscrição entre os associados e adeptos da
causa.
O CONCURSO DO IMPERADOR ANTE O PLANO DE JOSÉ DO PATROCÍNIO
O coronel Isaac Amaral nos narrou o interessante episódio
que comprova não ser D. Pedro II escravocrata como acusavam certos elementos
oposicionistas:
- Numa das sessões em que se discutia o caso de Acarape, com
a presença do notável tribuno José do Patrocínio, alvitrou este uma ideia de
grande alcance: conseguir colocar o nome do imperador, por qualquer meio, no
número dos promotores da libertação de Acarape. O valioso concurso do nome da
primeira autoridade do país, numa obra cujos autores eram tidos como
desordeiros, na opinião até de notáveis estadistas trairia, como trouxe,
extraordinária força à campanha, causando o efeito que bem se pode avaliar.
Ali mesmo, Patrocínio redigiu um telegrama em nome da
Libertadora, cujo texto era mais ou mens este:
“Nome Vossa Majestade ainda não figura na lista dos
subscritores da Libertadora Cearense para a libertação completa escravos
Acarape, o primeiro município do Brasil (a) José do Patrocínio”.
A resposta não se fez esperar. No dia imediato, era recebida
nos seguintes termos:
“S. Majestade agradecido pede inclui seu nome na lista dos
subscrito para a remissão dos escravos do Acarape. Remete um cheque de um conto
pelo London Bank. (a)”
Não me recordo já o nome do camareiro que o assinou. Suponho
que foi o Barão de Bom Retiro.
Se fato, o nosso consócio Alfredo Salgado, guarda-livros da
Casa Singlehurst, agente do London and Brazillian Bank, nos deu a confirmação
alvissareira da augusta contribuição, representando uma conquista moral de
elevada finalidade, não tanto pelo valor pecuniário, como pelo cunho de
solidariedade à grande obra nacional.
A LIBERTADORA E O POVO DE ACARAPE
- E como a Libertadora se ouve com o povo acarapense?
- Perfeitamente bem. As nossas sugestões foram bem aceitas
pelas principais famílias locais, que desde então começara a agir
solidariamente com o pensamento da Libertadora e cumprindo esta o dever
prometido de indenizar os proprietários mais pobres, resultando dessa concórdia
o brilho extraordinário das festas que abriam o ano de 1883 e elevou para
sempre, no conceito da História, o nome do Ceará.
Desse feito brilhante, nasceram novos horizontes para a
campanha abolicionista, que recebeu aplausos gerais da imprensa nacional, das
instituições do Brasil e até do estrangeiro, a quem veio emprestar maior
animação à lista, que ninguém poderia mais deter o caminho da vitória.
Acarape (Redenção). Casa que abrigou a Libertadora |
AS FESTAS EM ACARAPE
- Que tal as festas daquele dia, na depois Redenção?
- Ruidosas. Ruidosíssimas. Trens expressos transportavam
para aquela localidade o que Fortaleza possuía de mais expressivo em todas as
classes, e dos municípios vizinhos acorreram milhares de pessoas ávidas em
participar do grande acontecimento, inédito nas crônicas da nossa terra. Seria,
hoje, impossível descrever o que aquilo. Nem os limites desta entrevista o
permitem. Digo-lhe, porém, ter sido um verdadeiro desvairamento de entusiasmo.
Grandes e pequenos se confraternizavam, se abraçavam, chorando de comovedora e
comunicativa alegria.
AS FESTAS CINQUENTENÁRIAS
- E agora, o que achou da comemoração do 50° aniversário da
redenção em Acarape?
- Do que soube pelos jornais, julgo que não foi pouco não
terem esquecido os filhos de Redenção de festejar aquele dia tão glorioso para
a sua terra. Foi vitória meritória da sua mocidade não deixar cair ao ouvido a
memória do feito dos seus avós. Permito-me, porém, sair da suspeição para
estranhar que os promotores da comemoração não tenham se lembrado dos obreiros
já mortos e dos veteranos que sobrevivem fazendo reviver uma página histórica
daquele notável acontecimento em que até o nome excelso de Pedro II foi parte
moral e material de toda evidência.
Redenção. Obelisco à abolição (Waldery Uchôa) |
Longe de mim fazer censura. Acho o caso até natural, desde
que em nossa terra comumente esqueçam as crônicas do passado. Apenas o livro
salva um pouco esse abandono. Rodolpho Theofilo, no caso, legou ao Ceará
apreciável bagagem intelectual.
Da abolição aqui no Brasil, quiçá pouco transpirou em 50
anos, e pouco há para se armar um escritor na feitura de livros sobre o assunto
e conquistar leitores que o compreendem.
E com tristeza:
- Quantos boletins incendiários, cartas de homens de valor
do país e do estrangeiro, processos e narrativas que tanta luz poderiam fazer
sobre a história da abolição se perderam...Que peças oratórias de José Avelino,
Conselheiro Liberato Barroso, Almino Affonso, Oliveira Sobrinho, Facó, Joaquim
Nabuco e outros notáveis paladinos do abolicionismo não foram para as chamas...
Poesias de Patrocínio, Almino, Antônio Martins, Antônio
Bezerra, Juvenal Galeno, Barbosa de Freitas já não se encontram...
MÃOS CRIMINOSAS
- Há quem tenha afirmado que uma grande caixa, cheia de
impressos e de panfletos existentes na Biblioteca Pública foi incinerada há
anos por falta de espaço naquele departamento. Nos arquivos das repartições
públicas nada ficou, até mesmo as atas. Ao que me disse, mãos criminosas deram
fim a tudo.
Meu irmão Jose do Amaral possuía, como Rodolpho Theophilo,
importantes documentos, mas...onde se encontram hoje?
O SEGUNDO MUNICÍPIO LIVRE DO BRASIL
- Coube-me, também, a sorte de levar o meu modesto mas
sincero concurso à obra redentora de São Francisco da Uruburetama (Itapagé),
quando, destacado em grande comissão composta pelo tenente Felippe de Araújo
Sampaio, José do Amaral, José do Patrocínio, Telles Marrocos, Antônio Martins e
Antônio Bezerra, ali tendo ido na véspera, hosanas que o povo entoava a 2
fevereiro, dia memorável em que se redimiram os últimos cativos daquela nobre
terra, circunstância que não deve passar desapercebida. Inteiramente à custa da
população local, sem pedir nem receber o menor auxílio de fora.
- O que sobremodo para maior renome do feito.
- Sem dúvida, devo dizer ao caro jornalista, entretanto, com
toda a sinceridade, que as palmas da vitória de tão valiosa conquista civilizadora
cabem todas aos filhos daquela montanha, que guiados pela fé e pelo patriotismo
do seu dileto filho, Felippe Sampaio, tudo fizeram com esforços individuais,
recebendo a comissão com o mais fraternal abraço e solidariedade, dispensando o
mais carinhoso acolhimento as famílias da terra. A festa que então se realizou
não se apagará na memória do único sobrevivente da comissão, que sou eu. Não fosse
a grandeza da alma do povo custaria a acreditar na magnificência tal a
importância de que se revestiu.
Mensagens, poesias, discursos arrebatadores, música, fogos,
expansão de alegria geral davam à vila feição de incomparável entusiasmo.
Permito-me relembrar alguns nomes que a distância do tempo
não corroiu: Drs. Santiago, Columbano, Cel. Antônio Teixeira Bastos, Rufino
Ferreira Gomes, Vicente de Salles Primo, Padre de Maria Vasconcelos, Leontino
Carvalho, todos concorreram em alta escala para a magnificência do ato, sem
esquecer o Dr. Otto do Amaral Henrique e de uma distinta senhora, Dona Maria
Jorge de Souza, que a todos encantou pelos dotes da sua inteligência e cultura,
deslumbrando, deveras, a sua conversação aristocrática, de fino humor e sadias concepções.
Antônio Martins compôs uma poesia, “O Frade da Pedra”, que
fez época pela originalidade como pela sua inspiração. Rodolpho Theophilo,
Juvenal Galeno e tantos outros cantaram em prosa e verso o acontecimento,
elevando São Francisco à dignidade que merece e cuja significação dificilmente
a geração hodierna pode compreender.
OS FEITOS DA PROVÍNCIA - DR. ANTÔNIO AUGUSTO
- É longa e brilhante a história do abolicionismo da
Província, vale à pena conhecer as suas minúcias, o que é impossível numa
entrevista que já vai longa. Dir-lhe-ei, pois, que de 1883 em diante as
vitórias se sucederam até o 25 de março, cada vez mais afirmativas: Icó,
Quixadá, a exemplo de outros municípios, foram se libertando.
Pereiro libertou-se, igualmente, de maneira admirável graças
ao patriotismo do seu então juiz, Antônio Augusto de Vasconcellos, cujo nome
merece especial destaque na galeria dos abolicionistas da Terra da Luz. O
histórico desse feito vem descrito em um número da Revista Trimestral do
Instituto (do Ceará), onde se pode apreciar melhor.
A FIGURA LENDÁRIA DO “DRAGÃO DO MAR”
- Por fim, coronel, há algum interesse em esclarecer a
situação do jangadeiro Nascimento, que de alguma forma está, nesta entrevista,
pouca acentuada...
- É fácil contentar a sua curiosidade razoável, mesmo
atendendo à circunstância da consagração popular ao “Dragão do Mar”.
Como já lhe disse, durante as greves da praia, em 1881,
tivemos como mentor principal dos jangadeiros o liberto Antônio José Napoleão,
caráter adamantino de abolicionista fora do comum, pois, com esforços
titânicos, conseguiu, juntando vintém por vintém, às vezes com o sacrifício da
sua alimentação, obter a carta de alforria não só para si como para outros
escravos. Fazia do seu pé de meia fundos de reserva para quebrar os grilhões de
vários cativos. E nesse gesto altruístico para um homem pobre , foi até a
libertação total do Ceará!
Era, todavia, de uma modéstia e de um desprendimento tais
que ninguém conseguiu fazer dele o líder oficial da classe marítima, onde seu
nome tornou-se venerado. Dizia-nos sempre: “Para esse lugar, senhores moços, só
um homem forte e novo como o Chico da Matilde, que é também jangadeiro, muito
sério e amigo dos seus colegas de praia”.
Dali nasceu a escolha de Francisco do Nascimento, que
aceitou o convite da Libertadora, bendizendo esta o novo concurso, pois
Nascimento se entregou devotamente à causa, cioso do seu papel de chefe da
grande classe praieira, tornando-se acatadíssimo graças à sua força moral e
treinamento nas lides dos homens do mar. Era, além disso, prático-mor da barra
e possuía pulmões de tubarão que o habilitavam a mergulhos de meia hora,
batendo o se colega prático, Remígio, que passava como o melhor mergulhador e
nadador da costa do Nordeste. Muitas vezes, esses verdadeiros lobos do mar
faziam serviços no fundo do oceano como se fossem escafandristas.
Desde que Nascimento se investiu na posição que
merecidamente conquistou, prestou toda a solidariedade possível à Libertadora.
E foram tão preciosos que ela o premiou comlugar na diretoria.
O físico de Nascimento era agradável. Pardo, de pele fresca,
reluzente, robusto, muito musculoso, olhos vivos, dentadura esplêndida, pouco
vivaz, porém, na conversação, e fora do mar, a sua figura de bonacheirão
dava-lhe o tipo de um bojudo barqueiro da Holanda.
Da sua entrada para a Libertadora adveio-lhe maior
prestígio, fazenda da sua cor escura realçar seus méritos de bom camarada dos
abolicionistas, que sempre o cercavam de distinção. Apesar de muito modesto,
comparecia a todas as reuniões, festas e até cavalgadas que se faziam nos
arredores de Fortaleza.
Vivia em um pequeno sítio, bem plantado, abaixo do morro do
Seminário (Nota do Blog: nas proximidades de onde se encontra , hoje, o Centro
Dragão do Mar), sendo a sua mulher muito trabalhadora, o que cercava o seu lar
de relativa abastança. Bem nutrida, educada e a sua prole de caboclos sadios.
Era gente de princípios, arraigados em matéria religiosa, fazendo-se em sua
casa novenários em um oratório que ocupava lugar de honra e no qual venerava a
imagem de Nossa Senhora dos Navegantes.
Muitas vezes fui
àquele retiro tratar com Chico da Matilde sobre assuntos da nossa
campanha e, logo ao apear-me entrava em sua casa com o chapéu à mão,
depositando os meus níqueis no altar da Santa como tributo e respeito àqueles
corações crentes, estoicos na fé, intransigentes em princípios de moral e
religião.
Assim, pelos relevantes serviços prestados à causa,
tornou-se Francisco do Nascimento figura obrigatória como representante do
homem do mar, como um Netuno empunhando o tridente.
A sua viagem ao Rio, em uma frágil jangada, demonstrando
resistência e o espírito de heroísmo do cearense, torno-o ainda mais
glorificado. Eis o Dragão do Mar.
Nota do jornalista entrevistador:
Tens aí, leitores, a interessante e oportuna palavra de um
abolicionista de verdade, a qual muitos fatos dignos de notas foram expostos
brilhantemente e com especialidade do ponto-de-vista histórico.
Agradecendo ao coronel Isaac Amaral a gentileza da
aquiescência, esperamos proporcionar aos leitores uma apreciação sobre a
psicologia dos principais membros da célebre Libertadora Cearense.
Nota do Blog:
Isaac Amaral e seu irmão, José, tiveram destacada atuação
pela Sociedade Cearense Libertadora, fundada 8 de dezembro de 1880. De família
abastada, cultos, tiveram sobressaltos e amargaram processos durante a luta
contra a escravidão.
Não consta na entrevista a peleja judicial enfrentada por Isaac
Amaral, na qual um rico escravagista, defendido pelo advogado João Brígido
(pardo), cobrava todos os prejuízos obtidos durante o fechamento do porto de
Fortaleza. Por sorte, prevaleceu a antiga amizade entre o seu irmão
abolicionista com o reclamante e o entrave acabou em acordo, sem ônus.
Também constamos contrapontos entre as revelações do
entrevistado com os fatos descritos nos livros “A Abolição no Ceará” (Raimundo
Girão, 1984), e “História da Escravidão no Ceará” (Pedro Alberto de Oliveira,
2011). Os dois brilhantes historiadores citam como líder dos primeiros trancamento
do porto (27, 30 e 31 de janeiro de 1881) José Luís Napoleão, enquanto, com 73
anos, Isaac Amaral sustentou, por duas vezes, outro nome: Antônio José Napoleão
, um negro liberto, inclusive detalhando a sua profissão e a estima que possuía
entre os jangadeiros.
Amaral vai além dos outros autores, quando aponta seu irmão,
José do Amaral, e Pedro Arthur de Vasconcelos (funcionário da Casa Singlehurst)
como líderes, na madrugada de 27 de janeiro de 1881, do primeiro fechamento do
porto, além de mencionar parte da vida profissional e particular de Dragão do
Mar, notadamente a existência de um oratório à Nossa Senhora dos Navegantes em
sua residência “abaixo do morro do seminário”, ou seja, na proximidade do atual
centro cultural que o homenageia como patrono.
Ressalte-se os nomes citados, João Carlos Jathay e Cândido
Maia, como os autores do sequestro das duas escravas vendidas que iriam para o
Pará, quando uma multidão aguardava na praia o embarque no dia 31 de agosto de
1881. Detalhes pitorescos não constam nos livros de Raimundo Girão e do Prof.
Pedro Alberto. A propósito, para o segundo autor, essas escravas pertenciam ao
capitão Camerino Facundo de Castro Meneses, filho de Major Facundo. Já Isaac
Amaral sustenta que Camerino era uma família, o que de fato existia.
Curiosidades:
Em resposta às atividades
abolicionistas, o governo da Província demitiu Dr. Frederico Borges (Promotor
de Fortaleza), Dragão do Mar (prático-mor) e Antônio Bezerra (Recebedoria).
Revelação da estada de um escravo paulista no Ceará. Com
patrões ricos, foi educado em Paris, especializando-se em culinária. Embora não
faltando serviços e concorrido pelas elites, se dizia infeliz por conta da escravidão,
sendo o Ceará a única província brasileira em que se sentia livre.
José do Patrocínio teve a ideia de telegrafar para o
imperador sugerindo seu nome entre os promotores da libertação em Acarape. Em resposta
D. Pedro II enviou um cheque de um conto de reis. Na entrevista, aliás, Isaac
Amaral comenta a proximidade do famoso general herói da Guerra do Paraguai com
o imperador: “Tibúrcio era nosso”.
Breve biografia de Isaac Amaral
Filho dos portugueses João Antônio do Amaral e Maria Correia
do Amaral, Issac Amaral nasceu em Fortaleza a 18 de setembro de 1859.
Iniciou os estudos em 1864 na escola particular de Rufino
Bezerra de Menezes, matriculando em seguida no Ateneu Cearense e no Seminário
da Prainha, concluindo os estudos na Alemanha: humanidades e arquitetura.
No Brasil, retornando em 1879, foi para a Academia da
Marinha na capital, Rio de Janeiro. Mas foi em sua especialidade, construção,
que se destacou ao trabalhar na comissão do engenheiro Remy, em Quixadá, colaborado
com a construção do Açude do Cedro. Já em Fortaleza projetou a Capela do
Pequeno Grande, do Colégio da Imaculada Conceição e fez parte a equipe fo
Theatro José de Alencar.
Atuou nos movimentos abolicionistas não apenas no Ceará como
no Amazonas, e logo após asou-se, a 31 de março de 1883, com Joanna Barreira,
filha do coronel Inácio Alves Barreira,
o Nanã, de Quixadá, e de Maria Francisca Lessa, de Quixeramobim. Foram nove
filhos. A família costumava passae temporadas no seu sítio, Granja Bomfim, em
Guaramiranga, mas na capital residia no Alagadiço (Av. Bezerra de Menezes).
Faleceu a 24 de abril de 1942.
No ensejo do seu centenário, o dia foi de comemoração. Missa
em Ação de Graças na Igreja do Patrocínio, debates nas casas legislativas e noite
lítero-musical na Casa Juvenal Galeno.
Excelente e importante resgate para a história da Abolição no Ceará
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