CASTELOS, APENAS CASTELOS. (Por A. Capibaribe Neto)
Não, o poeta não é uma vítima, não é apenas um sofredor, não é um coitado. Talvez veja aquele que procura algo diferente, aquilo que sente, aquilo que passou. O poeta não é um dramático nem procura arrancar, daquele que o lê, lágrimas de um sentimento proposital. Não. Escrever é uma forma de desabafar.
A poesia é o desabafo do sentimental, do romântico, do poeta por aí. Quando escreve, as palavras coincidem numa rima que toca fundo na alma, arrancando verdades. “Chega de mentiras...”, disse ele olhando-se no espelho. Havia mentido em todas as cores. Mentiu sonhos azuis, mentiu esperanças verdes no branco, contrastou-se com o preto e descobriu-se incolor. Era impossível passar pelo branco sem se fazer ver. Foi o seu dia de preto no branco. E aí, olhou-se no espelho, sentiu vergonha de si mesmo e prometeu não dizer mais mentiras.
E chorou feito criança quando lhe tomam seus brinquedos. Paga-se um preço por cada mentira que se conta, principalmente quando elas trabalham os sentimentos de outrem, quando enganam a boa fé dos que se dedicam ao que mente, mas, inexplicavelmente, paga-se também pelas verdades que se diz.
Paguei de um jeito e de outro, mas apesar de tudo prefiro a segunda opção. A dor que fica da verdade que se paga é bem menor do que dor de uma mentira. À dor da verdade pode demandar uma saudade pela perda irreversível. À dor da vergonha pela descoberta de uma mentira só pode agregar o arrependimento imperdoável pelo engano.
Não obstante às certezas das reações por quaisquer das atitudes, a verdade é que não se deve abrir demais as portas, remoer o passado, avivar feridas ou reabrir cicatrizes. Não se pode voltar ao passado para consertá-lo nem para modificá-lo. No máximo tirar deles as lições, os ensinamentos para que os erros, os equívocos, não voltem a se repetir.
No papel em branco, o poeta conta e canta as suas lamentações, fala das suas passagens, anseios, saudades, nostalgia, das relembranças e da fantasia. Isto não indica que o poeta seja uma eterna vítima, um coitadinho para ser ajudado, para receber solidariedade em forma de apertos de mão, de tapinhas nos ombros. É que o poeta, nas suas confissões, nas suas verdades e nas descobertas das suas mentiras tornou-se diferente dos comuns.
Precisei fazer o caminho de volta, tratando dos fatos bonitos que supus haver plantado em direção ao castelo dos sonhos e devaneios eternos. Meu castelo era uma casinha branca com uma menina de tranças à janela. A casinha já não existe, a menina cortou os cabelos e hoje passa faceira fingindo que não me vê. Meu castelo era a paz, a harmonia que me abrigavam no aconchego de um abraço cheio de carinho. Meu castelo era o fim o fim de uma busca, era o porto de chegada.
Estou diante de uma nova empreitada e meu navio está partindo. Voltei ao marinheiro de muitos mares em busca da Maria sonhada, no lugar da Maria de Cada Porto.
De repente o poeta se confunde, torna-se trágico, covarde, quer fugir, escapar. Não bastam palavras e rimas, nem as saudades que se juntam para se tornarem maiores.
De repente o poeta olha para o fundo do abismo e sonha com as asas impossíveis de um mergulho em direção ao desconhecido. E cerra os olhos, aperta-os, comprime-os irados, odiando as lágrimas já tão conhecidas, tão faladas, tão comuns e insistentes. E mais se fecha, e mais se abre, grita, urra de dor, feito fera ferida mortalmente, querendo escapar da morte ou lutar brevemente para que não lhe prolongue o sofrimento.
Crisma as mãos para os céus e brada suas blasfêmias numa irreverência inútil. Depois, genuflexo, posta-se em oração a dizer de dentro para si suas preces, a fazer seus pedidos mudos, a contar sua confissão mais sublime. Mais de acha, mais se perde, mais se afunda e se desespera. Já não acredita na bonança depois da tempestade. A ilha da fantasia era só uma miragem de esperança que se desfez.
Da moldura das mãos sumiu o rosto moreno a dizer num jeito especial: “Eu amo tu”. Que importam as regras da gramática? Uma ilhazinha que pareceu grande e sumiu na linha do horizonte cada vez mais distante, mais impossível, ilusão mais cara e mais incrível de um sonho muito caro.
E o poeta acorda devagarzinho, temendo pela realidade d qual não se pode fugir, cobre os olhos com as mãos e volta a soluçar abafado, na tentativa vã de sufocar a saudade que começa a apertar. Meu castelo era aquela bendita confissão, na qual veio, infelizmente, “é o fim, pronto, acabou...”, sem retorno, sem apelação, definitivo.
Ficaram os rastros na areia, mas lá vem o vento rasteiro, que apaga. Ficaram, porém, as boas lembranças. Mas olha, lá na frente estão as novas fugas, as novas tentativas de esquecer tudo num recomeço quase louco, desesperado, como se hoje fosse a antessala do fim do mundo. É, pode ser, talvez, quem sabe, quem pode afirmar? O poeta é um sonhador, cheio de utopia, sempre nessa busca tola do paraíso, da felicidade perfeita. Talvez o poeta goste de sofrer porque somente assim pode continuar romântico, para contar e cantar.
Meu castelo era um poema simples, talvez uma só. Por isso fiz um livro de lamentações pálidas, desbotadas e comuns.
Era madrugada quando voltei para casa. Havia chovido, o asfalto estava molhado, já não respeitavam os sinais: “atenção”, dizia o amarelo; “olha a vida”, falava o verde, e avancei o vermelho como se não temesse a morte.
“Eu amo tu...” A vozinha sorridente repetia na minha cabeça. Olhei para fora, para o céu escuro, carregado e não pude ver nem a luz nem as estrelas, o homenzinho verde devia estar longe ou dormindo. Deixei cair as primeiras gotas de uma nova neblina que insistia fina sobre meu rosto para não deixar que as lágrimas de sempre mostrassem que o poeta estava chorando porque, mais uma vez, sentia que seus castelos eram apenas castelos, nada mais.
Foto Castelo do Plácido, Fortaleza CE, demolido em 1974: A. Capibaribe Neto.
Publicação: Tribuna do Ceará, 09/02/1981.
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