1940. Fortaleza das crianças e das árvores - Por Yaco Fernandes

 

Cartão Postal de Fortaleza (1940). Por Yaco Fernandes.

 

Yako Fernandes

O viajante que, indo do Sul ou do Norte, se acostumou a encontrar, nas cidades do litoral, os panoramas emboscados em cada esquina imprevista, por trás de ladeiras íngremes e tristes, ou para além da riba dos rios cheios dos sujos civilizados, há de, necessariamente, situar Fortaleza fora dos seus hábitos visuais.
Sem o artifício das paisagens inesperadas, impressionando pela surpresa e, por vezes, doendo nos olhos como pancadas, a capital cearense se espalha, em ruas entrecortadas perpendicularmente, na planície vasta, e a sua beleza, só muito tarde alcançada pelo estrangeiro, é essa de que falava o poeta, a beleza que é a força e a graça da simplicidade.

 Por isso, parar em Fortaleza é fazer uma suave cura de simplicidade. Para lá da Praça do Ferreira, onde o desenraizado comerciante de relações internacionais finge de business-man yankee e usa telefone automático, toda a existência é um mergulho na doçura de viver e uma festa vibrante para os sentidos e para alma.
 

Apanhar um bonde ou um ônibus para qualquer bairro é fugir, no tempo e no espaço, para a alegria. Lavados de sol e de vento, os bairros eternamente domingueiros, limpos e compostos, todos os dias, a ver a Deus com suas melhores roupas. De portas e janelas abertas, as casas mostram aos passantes as suas ingênuas intimidades, num convite amável para o repouso e para a amizade. E nas calçadas, ranchos álacres de meninas em vestidos vistosos e fitas coloridas nos cabelos, que passeiam entre risos e penduram nas árvores férteis e serenas seus cachos audazes.

 Podem mudar, ao léu do itinerário dos veículos, os rostos das criaturas e os nomes das ruas: a alegria continua. Atinja o bonde a Praça de São Sebastião, de cajueiros amigos sacrificados a planos de urbanismo e, contornando onde era o açude do Zé Gaguinho, penetre na longa e larga reta que vai para o Alagadiço; perca o pedestre os seus passos entre as sombras gostosas do Prado Velho ou pasme em frente da tranquila compostura dos bangalôs da Aldeota; seja o bairro Mororó ou Jacarecanga, nomes plenos de vogais sonoras que deixam na boca uma sensação de beijo.

 Por toda a parte Fortaleza é uma cidade festiva, que agradece a Deus por sua alegria e simplicidade. E após encher os olhos com tais perspectivas, tratado por sua gente que o recebe como um irmão distante, partido pelos desiguais roteiros do mundo, há muito não visto, o estrangeiro compreende que a sua beleza possui dois motivos ornamentais: as crianças e as árvores. Crianças alegres e aventurosas como gatos jovens, enchendo as ruas e povoando escolas, dispersando-se entre as praças e jardins; riem e cantam a delícia da vida, retribuem ao Senhor a maravilhosa dádiva da existência.

 De noite, quando acontece a lua bonita de Fortaleza, os homens, em cadeiras espalhadas pela areia, na Altamira ou no Benfica, soltam para o céu iluminado as notas dos violões. E nas vozes das crianças, cirandando ao luar, a cidade reza a prece do adormecer.

 E as árvores, que em Fortaleza ultrapassam a categoria de guarda-chuvas municipais, colocando-se no mesmo plano dos membros da família, parentes seguros, que nunca padecerão o chamado dos extraordinários caminhos da Terra. Pelas ruas, elas se enfileiram intermináveis, várias e copadas, e triste o quintal onde pelo menos uma não avance para o céu seus ramos possantes. Ensombrem o Beco da Apertada Hora, ou alegrem, mais adiante, a Rua da Piedade. A cidade com elas se afoga num verde mar tranquilo.

 Em toda orla, de ondas bravias, da Praia do Pirambu à Enseada do Mucuripe, passando pela Praia de Iracema e pela Volta da Jurema, estendem-se coqueiros esguios, acenando os últimos adeus para os que se vão pelas movediças estradas do mar ou abrindo os primeiros abraços amigos aos que retornam à terra natal.
E assim, enfeitada de crianças e de árvores, na singeleza dos bairros eternamente domingueiros, Fortaleza, cura de tranquilidade, é uma cidade feliz, que sorri para o céu, festiva diante de Deus.
 
                                                             Jornal O Estado, 8 de setembro de 1940.   
 

Nota do blog:


Yaco Fernandes (1914 - 1965) foi um jornalista, escritor e crítico literário pernambucano radicado em Fortaleza, onde militou no movimento estudantil.  Publicou cedo os seus conhecimentos nos periódicos locais. Advogado, foi auditor da Justiça Militar e destacado orador.

O artigo acima o remete ao seu lado poético, embora possuidor de propriedade contista, divagando sua paixão pela cidade, rememorando o primitivismo de uma vila em volta de areal e de um povo alegre e acolhedor.


Em tempo:


Açude do Gaguinho: Alimentava o Jardim Japonês, no início do Alagadiço (Av. Bezerra de Menezes, no Farias Brito). Aterrado, no local, hoje, um atacarejo.

Rua da Piedade: Rua Joaquim Torres.

Rua da Hora Apertada: Rua Governador Sampaio.

Velho Prado: Antiga pista de corridas de cavalos conhecida como Sport Cearense e depois Campo do Prado. Atualmente é área do Estádio Presidente Vargas e do Instituto Federal. Havia também prado no Campo do Alagadiço, explorado pela Associação Desportiva Cearense, ADC, depois o Campo do Maguary.

 



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